Fora uma manhã febril, mas o presidente decidira não perder a nadada de sempre. Em geral ia duas vezes por dia, pouco antes do almoço e outra vez antes do jantar, com o auxiliar Dave Powers. Os médicos haviam-lhe prescrito exercícios de natação para o problema das costas, mas era também uma forma de relaxar. A princípio construída para Franklin Roosevelt como parte do tratamento da pólio, a piscina interna no porão da Ala Oeste fora reformada e decorada com o mural de uma gloriosa cena de navegação nas ilhas Virgens, doado por Joe Kennedy. Os dois amigos entraram num papo agardável enquanto praticavam nado de peito de um lado para o outro dos 80 metros d´´agua, mantida em constantes 32 graus.
Ao voltar do exercício, Kennedy passou pelo Salão Oval e dirigiu-se à sala de refeições para um almoço leve. O telefone tocou à 13:45. Era McNamara, com a notícia do U-2 desaparecido no Alasca.
Poucos minutos depois, o chefe de espionagem do Departamento de Estado subiu às pressas a escada, vindo do escritório de Bundy no porão. Roger Hilsman acabara de saber da corrida de jatos soviéticos e americanos. Após passar dois dias sem dormir, sentia-se exausto, mas entendeu na hora o significado do que acontecera.
- As implicações eram tão óbvias quanto horrendas: os soviéticos bem podiam encarar aquele vôo de U-2 como um reconhecimento de última hora em preparação para a guerra nuclear.
Hilsman esperava uma exploração de fúria do presidente, ou pelo menos algum sinal do pânico que ele próprio começava a sentir. Mas Kennedy quebrou a tensão com uma risada curta e amarga e um truísmo de seus dias na Marinha:
- Tem sempre um filho da puta que não recebe a notícia.
A calma exterior traía uma profunda frutração. Ao contrário de outros membros da família, em particular o irmão Bobby, Kennedy ficava calado quando zangado. Os auxiliares mais próximos temiam mais o ranger de dentes que as ocasionais explosões. Quando realmente fora de si, ele batia nos dentes da frente com as unhas ou agarrava os braços da cadeira com tanta força que os nós dos dedos ficavam brancos.
Kennedy descobria os limites do poder presidencial. Era impossível um comandante em chefe saber tudo que se fazia em seu nome. Havia tantas coisas que só descobria quando "algum filho da puta" estragasse tudo; a máquina militar operava segundo uma lógica e impulso interno próprios. O Pentágono garantia-lhe que os vôos para coleta de amostras de ar ao pólo Norte haviam sido planejados e aprovados muitos meses antes. Ninguém pensara na possibilidade de um U-2 acabar do outro lado da fronteira soviética no dia mais perigoso da Guerra Fria.
Não apenas a extensão de sua própria ignorância perturbava Kennedy. Às vezes pedia que fizessem alguma coisa e nada acontecia. Um exemplo desse fenômeno, pelo menos para ele, eram os mísseis Júpiter na Turquia. Quisera tirá-los de lá havia meses, mas a burocracia sempre encontrava um motivo obrigatório para ignorá-lo. Manifestara essa exasperação durante ima caminhada no Jardim das Rosas com Kenny O'Donnel pela manhã. Mandara-o descobrir "a última vez que pedi a retirada daqueles malditos mísseis da Turquia. Não as primeiras vezes que pedi a retirada, apenas a data da última". Revelou-se que o presidente instruía o Pentágono a examinar a remoção dos Júpiteres em agosto, mas a ideia fora arquivada por receio de irritar os turcos. Bundy depois insistiu que jamais recebera uma "ordem presidencial" formal para retirar os mísseis, e os registros arquivados parecem confirmar isso.
A remoção dos mísseis complicava-se mais agora que Kruchev tentava usá-los como moeda de barganha pública. Mas Kennedy tinha certeza de uma coisa: não ia à guerra, pois de outro modo "a coisa toda vira cinzas". Isso resumia muito bem a maneira como se sentia 20 anos depois, agora que ele próprio decidia "os porquês e portantos".
Mas o drama naquela tarde de sábado pouco tinha a ver com os desejos de Kennedy ou Kuchev. Os fatos moviam-se mais rápido do que os líderes políticos podiam controlar.
Um avião espião americano fora derrubado sobre Cuba. Outro se perdera sobre a Rússia. Uma bateria de mísseis de cruzeiro soviética tomara posição diante de Guantánamo, pronta para cumprir a ameaça feita por Kruchev de "varrer" a base naval. Um comboio de ogivas nucleares dirigia-se a um dos regimentos de mísseis R-12. Castro ordenara ao exército que abrisse fogo sobre aviões americanos em vôo baixo e exortava os soviéticos a pensarem num primeiro ataque nuclear.
O presidente nem sequer exercia completo controle sobre suas próprias forças. Tinha apenas um vago senso de confronto em formação no Caribe, onde navios de guerra americanos tentavam forçar submarinos soviéticos a irem à superfície e os exaustos tripulantes imaginavam se já começara a Terceira Guerra Mundial.
O paradoxo da era nuclear era que os americanos tinham um poder maior que nunca - mas tudo seria posto em risco por um único e fatal erro de cálculo. Os erros não passavam de uma consequência inevitável da guerra, mas nas anteriores haviam sido mais fácies de consertar. As apostas eram muito mais altas agora, e a margem de erro, muito mais estreita. "A possibilidade de destruição da humanidade" não lhe saía da cabeça, segundo Bobby. Ele sabia que a guerra "raras vezes é intencional". Perturbava-o mais a ideia de que, "se erramos, não erramos apenas para nós mesmos, nossos futuros, nossas esperanças e nosso país", mas para os jovens em todo o mundo "que não tiveram papel, nem voz, que não sabiam sequer do confronto, mas cujas vidas seriam apagadas como as de todos os demais".
Um fraco fulgor surgiu no horizonte ao lado do bico do avião de Maultsby. Ele sentiu o ânimo elevar-se pela primeira vez em horas. Agora tinha certeza de que se dirigia para o leste, de volta ao Alasca. O navegador em Eilson vira o mesmo fulgor rubro uma hora e meia antes, quando ainda estava escuro sobre Chukotka. Maultsby decidiu manter o rumo até descer a 20 mil pés. Se não houvesse nuvens, desceria para 15 mil e olharia em volta. Se houvesse, tentaria manter a altitude o máximo possível. Não queria bater numa montanha.
A 25 mil pés, o traje pressurizado começou a desinflar-se. Não se viam nuvens nem montanhas. A essa altura, havia apenas luz suficiente para permitir a Maultsby ver o chão. Coberto de neve.
Dois F-102s com a típica pintura vermelha na cauda e na fuselagem apareceram na ponta de cada asa. Pareciam voar a uma "velocidade quase nula", num ângulo perigosamente inclinado. Maultsby tinha apenas energia de bateria suficiente para entrar em contato com os caças na freqüência de emergência do rádio. Uma voz americana atravessou o ar em estalos:
- Bem vindo ao lar.
Os dois interceptadores F-102 entravam e saíam disparados das nuvens, circulando o abalado avião espião como insetos a zumbir. Se tentassem igualar a lenta velocidade de planador do U-2, se incendiariam e cairiam. Pelo menos não havia sinal de MiGs soviéticos, que tinham voltado para Anadir muito antes de Maultsby alcançar águas internacionais.
O aeroporto mais próximo ficava numa primitiva faixa de gelo num lugar chamado estreito de Kotzebue, posto militar de radar pouco acima do Círculo Polar Ártico. Faltavam cerca de 20 milhas. Os pilotos dos F-102s sugeriram que Maultsby tentasse pousar ali.
- Vou fazer uma curva à esquerda, por isso é melhor se mandarem - ele falou pelo rádio ao avião da esquerda.
- Não tem problema, vamos lá.
Quando Maultsby virou à esquerda, um dos F-102s desapareceu sob a asa esquerda do seu avião. O piloto falou de volta para dizer que ia procurar a pequena faixa de gelo.
Roger Herman esperava na porta da pista na base McCoy da Força Aérea nos arredores de Orlando, Flórida, vasculhando céu do sul em busca de algum sinal de Rudy Anderson. O oficial móvel tinha um papel crucial na ajuda ao piloto para pousar o avião. O U-2 já era bastante difícil de pilotar; mais ainda de pousar. O piloto tinha de fazer as longas asas pararem de gerar força ascensional exatos dois pés acima da pista. O oficial móvel corria atrás do avião num veículo de controle, gritando a altitude a cada dois palmos. Se o piloto e ele fizessem o trabalho direito, o avião pousaria de barriga. De outro modo, continuaria a planar.
Roger esperara Anderson por mais de uma hora. Perdia rápido a esperança. O piloto não mandara uma mensagem de rádio codificada para avisar que tornara a entrar no espaço aéreo americano. Talvez um erro de navegação o houvesse feito desviar-se. Mas só tinha combustível suficiente para um vôo de quatro horas e meia. Partira às 9:09. O tempo se esgotava.
De pé na ponta da pista, Herman sentia-se como alguém num filme sobre a II Guerra Mundial, contando os minutos até a volta do amigo. Esperou até receber um chamado do comandante da ala, coronel Dês Portes:
- É melhor você voltar.
Por: Michael Dobbs