Sobreviventes da tragédia nos destroços do avião Fernando Parrado, o Nando, passou três dias inconsciente antes de despertar e descobrir que o avião que levava sua equipe de rúgbi para jogar um amistoso no Chile havia caído, em meio à cordilheira dos Andes.
A queda aconteceu no dia 13 de outubro de 1972. Quando ele acordou descobriu, além de tudo, que sua mãe, Eugenia, estava morta, e que sua irmã, Susana, agonizava. Recuperou-se, e permaneceu junto a ela até vê-la partir para o outro mundo.
As duas parentes de Parrado não foram as únicas vítimas. Os sobreviventes, a mais de quatro mil metros acima do nível do mar, estavam rodeados de cadáveres, não tinham o que comer e nem como se abrigar. O verão estava se aproximando. Mas, na montanha, a temperatura não variava muito, ficava sempre perto dos 30 graus negativos.
Tampouco sabiam como se comunicar e chamar a atenção das equipes de resgate; precisavam de instrumentos até para se proteger das avalanches, uma das quais, a pio das que viriam a sofrer, tirou a vida de várias outras pessoas. Só restaram os 16 que ainda podem contar a história.
Suportaram, nestas condições, 72 dias, até 22 de dezembro, quando um tropeiro chileno avistou duas figuras esqueléticas à beira de um rio de montanha: eram Roberto Canessa e Parrado, que - à luz de um final anunciado - decidiram apostar tudo e se lançaram em busca de ajuda em uma jornada quase suicida, que durou dez dias e culminou com o resgate de ambos.
Esses 10 dias se transformaram em lenda, milagre etc., mas, passado tanto tempo, nem mesmo os protagonistas daquela longa caminhada conseguem explicar de que forma conseguiram se orientar em meio aos campos nevados da inóspita e invencível cordilheira.
Parrado, uma semana depois do acidente que o lançou às trevas, descobriu que as buscas pelo avião desaparecido haviam sido suspensas, que eles haviam sido dados como perdidos e que não contavam mais para o mundo.
Em meio a essa história, Parrado atraiu a curiosidade internacional, talvez por sua decisão irrecorrível de enfrentar a adversidade, desafiar o frio e encontrar a salvação. Sua boa forma de jogador de rúgbi e sua juventude o ajudaram, mas a situação que viveu seria extrema para qualquer pessoa.
Ele sempre usou o termo sorte para descrever o que aconteceu. A palavra milagre remete à religião católica, praticada pelos uruguaios. Mas, no caso de Parrado, mais que a fé foi a força física que permitiu que ele encontrasse a salvação, e com isso salvasse os companheiros.
Ele já declarou em mais de uma entrevista que "no meu caso, creio que o rúgbi influiu mais que a formação religiosa". Talvez ele também encontre dificuldades para reconhecer um lado místico em sua experiência, dada a ira contida que a perda de duas das pessoas que mais amava ainda provoca.
Parrado vive em Montevidéu, Uruguai, com a mulher Veronique e as filhas Verónica e María Cecilia. É empresário, produtor de televisão e faz palestras sobre sua experiência e sobre formas de enfrentar os contratempos.
Escreveu, em colaboração com o jornalista norte-americano Vince Rause, o livro "Milagro em los Andes".
Esta é a conversa que ele manteve com Terra Magazine horas antes de embarcar em um avião, com destino desconhecido, e disposto a não se colocar mais à disposição quando o jornalismo exige que se pronuncie sobre dias que o marcarão para sempre.
Terra Magazine - O senhor prefere dar poucas ou nenhuma entrevista...
Parrado - Sim, confesso que não tenho grande simpatia pelos jornalistas. O jornalismo, com exceções, é profissão de carniceiros. Além disso, o que eu tinha a dizer sobre o assunto, disse em meu livro.
Mas é que houve muito sensacionalismo sobre vocês.
É verdade. Mas esse sensacionalismo de que você fala em minha opinião é a essência do jornalismo. E esta foi uma experiência muito limítrofe para que desejemos nos submeter a esse tipo de assédio.
Por que o senhor decidiu escrever o livro?
Entre outras coisas, para deixar de dar entrevistas.
Na noite antes de se decidir que partiria em sua expedição final, Parrado disse que, se chegou a dormir por algum tempo, foram não mais que alguns poucos minutos de sono intermitente.
"Na noite anterior coloquei roupa adequada para a montanha, uma camiseta de algodão, calças de lã, umas calças de mulher. E três jeans. Estava tão magro que tudo me servia. Quatro pares de meias, todas cobertas com sacos de supermercado. Um gorro de lã na cabeça; eu tinha uma sensação de claridade fantástica. Suponho que tenha sido por ter tomado uma decisão, e sentir que ela era irrevogável. Não dava para voltar atrás. Pensava em meu pai, na dor de meu pai, e a minha vista ficava mais clara. Havia feito algumas viagens exploratórias, mas essa era a definitiva. Todos pareciam sentir isso. Eu também. Mas já era um fato. Era uma decisão. Estava deixando o grupo. Algo me dizia que ia voltar a vê-los. Mas era hora de partir. Meu pai sempre foi uma pessoa prática. Creio que herdei isso dele. As coisas que se deve fazer, e que se pode fazer, devem ser feitas. E ali não havia mais opção. E era necessário que nos apressássemos. Queria que a partida fosse a mais rápida possível; a única coisa que se consegue quando a gente fica enrolando é voltar atrás em nossas decisões".
Canessa também estava bem decidido?
Sim, tanto quanto eu.
Há um momento do livro que parece revelador: "A premente necessidade que me impulsionava a caminhar para o oeste era a mesma que levaria alguém a pular de um edifício em chamas. Com que lógica você sabe que chegou o momento de saltar para o vazio? Naquela manhã, eu soube a resposta. Sorri para Carlitos (Páez Vilaró) e depois me virei antes que ele pudesse ver a angústia em meus olhos. Meu olhar se fixou por um longo momento no montículo de neve amolecida que marcava o lugar em que minha mãe e minha irmã estavam enterradas".
Aquele momento... Aquele momento foi decisivo. Eu o simplifico. No tempo posterior à morte de Susana e de mamãe, reprimi todo o impulso emocional. "Se eu morrer", lembro de ter pensado, "meu pai nunca saberá como a consolei e como lhe dei calor, e o quão tranqüila parecia em sua tumba de gelo".
A partir daquele momento, tudo foi vertigem. Dez dias no limbo ou no inferno. Dois alpinistas debilitados, estressados e consumidos pela angústia, a mais de três mil metros de altura e sem equipamentos, a uma temperatura devastadora.
Meus batimentos cardíacos dispararam, o sangue ficou espesso, a freqüência respiratória se acelerou até a hiperventilação e a umidade que eu perdia ao expulsar o ar me desidratava. Estávamos com sede, o tempo todo. Não havia gelo que a saciasse.
Essa era a situação quando começou a parte mais escura e incerta da viagem. Privados de orientação segura, tudo se reduzia a escalar e viver, ou tropeçar e morrer.
Jamais estive tão concentrado. A minha mente, minha cabeça, nunca mais voltou a experimentar uma conexão tão íntima com minha animalidade. Não sei como dizer isso. Mas me esqueci de mim mesmo. Eu não era eu. Eu era minha família e todos os amigos que esperavam. Perdi o medo (estava aterrorizado). Perdi o cansaço (estava esgotado). Era um desejo, um desejo de escalar, atravessar a montanha, descer a planície. Foi um momento único, inesquecível. Se tenho que pensar em Deus, Deus me invadiu naquele momento. Estava vivo, mas vivo de verdade, a vida fluía. E eu esperava. Só alguns dias depois nos sentimos arrasados.
Isso aconteceu quando enviaram o terceiro acompanhante de volta ao avião, ficaram com sua comida e apostaram forte no rumo oeste, o mesmo que insistiram o amigo que voltaria memorizasse. Seguiam uma intuição, e uma vaga sombra de que abaixo se abria um vale. Mas sim, lá se abria o vale, um rio, algumas vacas e finalmente, ao longe, um camponês, um tropeiro que na manhã do décimo dia, os colocou em contato com o resto do mundo.
Com Roberto, anos depois, tentamos refazer aquele caminho de volta, do lugar onde nos encontraram até o avião, com todos os requisitos de segurança exigidos para um percurso naquele terreno e naquelas condições, descansados, alimentados e equipados. Ainda assim, foi impossível. Não pudemos. Estávamos sendo acompanhados por uma equipe de apoio. Ela nos recolheu e nos colocou em um helicóptero. Não sei como fizemos. Dessa vez me lembro que chorei sem parar. De uma vez, tudo escureceu e clareou. Mas nunca pude explicar como fizemos, então, para chegar ao nosso destino.
Festa: Terra Magazine