A tarde de 14 de março de 2007 começava tranqüila como qualquer outra no distrito de Maracangalha, em São Sebastião do Passé (BA), a 58 quilômetros de Salvador. Como tantos outros trabalhadores rurais da região, Antonio Silva dos Santos, o Alumínio, de 27 anos, estava a caminho da propriedade onde trabalhava, com colegas, quando viu um bimotor despencar sobre a fazenda Parque Nossa Senhora das Candeias.
O acidente, que completou um ano na sexta-feira, decretava o fim da tranqüilidade no simpático lugarejo de 5 mil habitantes cantado nos versos de Dorival Caymmi. Alumínio e os colegas foram até o local da queda. Descobriram que havia, no avião, quatro pessoas - todas mortas - e muito mais dinheiro do que eles, ganhando um salário mínimo por mês, poderiam pensar em ver em toda a vida.
Havia R$ 5,56 milhões a bordo, que estavam sendo mandados de agências bancárias do norte baiano para Salvador. Não tardou para que a notícia de que o avião transportava uma enorme quantidade de cédulas de R$ 10 e R$ 50 se espalhasse.
Centenas de pessoas se aglomeraram entre os destroços da aeronave e os quatro corpos mutilados, na tentativa de saquear. "Muita gente saiu carregada de dinheiro", conta Alumínio. "Só fiz o que todo mundo estava fazendo."
O lavrador voltou para casa sem contabilizar quanto havia "arrecadado". Escondeu as notas da melhor forma que pôde. Diz não ter contado a "boa nova" nem à mulher - preferiu seguir, em silêncio, seu caminho de volta ao trabalho. Ao longe, viu as primeiras equipes policiais chegando ao local do acidente, atirando para cima, tentando tirar curiosos e aproveitadores do meio dos destroços. Já não havia mais dinheiro ali - os policiais demoraram a entender que o avião transportava valores.
A mulher de Alumínio, Mariana, de 23 anos, diz ter ficado sabendo do acidente e da onda de saques pelas pessoas que, naquela tarde, lotaram o bar-mercearia que ela tocava com a irmã, Marinalva, de 22, em uma parte da casa simples. Havia ao redor da concorrida mesa de sinuca no quintal um sentimento conflituoso de excitação, tristeza, culpa e medo. Marinalva chegou a declarar, na época, que esperava que os saqueadores fizessem mais compras ali.
Da noite daquele 14 de março até hoje, porém, passou a ser o medo o sentimento dominante.
Alguns grupos de policiais - e muitos outros de criminosos que se fazem passar por policiais - empreenderam uma verdadeira caça ao tesouro nas casas da região, com direito a sessões de tortura contra os moradores da vila.
Oficialmente, a polícia recuperou pouco mais de R$ 500 mil até hoje.
No último ano, a maioria dos vizinhos de Alumínio e Mariana - incluindo um grupo de sem-terra que se instalava em uma fazenda nas proximidades - fugiu do distrito. "Quem pegou muito dinheiro foi embora rápido e os outros foram indo depois, para não morrer", conta Mariana. "A gente só não saiu porque nosso dinheiro foi levado e a gente não tinha aonde ir." Ela diz que sua família foi "vítima" tanto de policiais reais quanto de falsos.
Na noite seguinte à queda, Alumínio foi abordado por quatro policiais - verdadeiros - ao chegar do trabalho. Sob a mira de revólveres, foi forçado a mostrar onde havia escondido o dinheiro.
O lavrador devolveu a quantia e passou 24 horas detido na delegacia. Tempo suficiente para que sua mulher fosse abordada por policiais falsos. "Mostraram as armas e disseram que iam revistar nossa casa. Como não acharam nada, resolveram me seqüestrar." Mariana conta que só foi liberada três horas mais tarde, quando os assaltantes souberam que seu marido havia sido preso. Histórias como a da família Santos repetiram-se na região.
"Aconteceu muita invasão", conta um dos poucos sem-terra instalados na área desde antes da queda, Luiz Antonio Teixeira Santana, de 33 anos. "Os companheiros fugiram, porque os que falavam que eram da polícia chegavam, desmanchavam os barracos, batiam... Só queriam saber onde estava o dinheiro."
O então administrador da fazenda onde o avião caiu, José Linaldo de Jesus Santos, de 37 anos, foi outro que abandonou o lugar com a família, dizendo-se ameaçado. O novo administrador, João Pereira da Silva Filho, de 30, chegou à fazenda uma semana depois. "Estava tudo abandonado por aqui", conta. "O gado estava solto. O imóvel, aberto."
Muitos dos destroços continuam lá, ao relento. A insegurança e a fuga dos vizinhos levaram Mariana e Marinalva a fechar o bar - continuam apenas com a mercearia. Na janela de onde ainda vendem produtos, foi instalada uma grade nada convidativa aos clientes. Na porta de entrada da casa, outra.
Fonte: O Estado de S.Paulo