A preferência do governo brasileiro pela França em mais um acordo bélico pode limitar a diversificação de fontes de armamentos, destoando da tendência atual das Forças Armadas. É a opinião de Geraldo Cavagnari, docente do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e ex-professor da Escola de Estado Maior. “O Brasil tem que beber em vários centros que estão mais desenvolvidos em termos militares. Mas esse imbróglio da França deixou esse processo conturbado”, disse em entrevista ao eBand.
O caça F-18 Super Hornet, da americana Boeing, é o preferido da Aeronáutica, segundo Cavagnari
No último dia 7, os presidentes do Brasil e da França, Luiz Inácio Lula da Silva e Nicolas Sarkozy, assinaram o maior acordo militar da história recente do país, no valor de R$ 22,5 bilhões. Na ocasião, os dois anunciaram ainda a abertura de negociação para a compra de 36 caças Rafale, da francesa Dassault.
No dia seguinte, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, disse que o processo de licitação dos aviões não está concluído. A Aeronáutica ainda irá apresentar um relatório técnico sobre os três concorrentes – o francês Rafale, o Gripen, da sueca Saab, e o F-18 Super Hornet, da americana Boeing. Na quarta-feira (16), Jobim reconheceu que há uma opção política pela França. "Basta que eles façam cumprir a transferência de tecnologia e o valor final", afirmou o ministro.
Segundo o professor, o país não quer ser influenciado militarmente pela França ou EUA, mas sim uma cooperação. Cavagnari ressaltou ainda que o governo pode optar por uma posição política em detrimento da técnica, mas deve justificar a decisão. “A situação é que vai dizer se a decisão deve ser política ou técnica, a não ser que exista um equilíbrio entre as duas posições”, afirmou.
Veja abaixo a íntegra da entrevista na qual o especialista também fala a respeito da relação militar entre Brasil, França e EUA.
eBand - Por que Lula se antecipou em anunciar as negociações com a França?
Geraldo Cavagnari - Pode ter sido por mau assessoramento ou por falta de informação ao presidente. Mas surpreendeu o Ministério da Defesa e o Comando da Aeronáutica. Todo mundo começou a fazer relações, a tirar conclusões sobre o que está acontecendo, como se a compra do Rafale já estivesse decidida. No entanto, a questão não está encerrada. Os americanos estão vindo com toda força, porque eles querem vender o produto da Boeing. Tem de haver responsabilidade do governo nas negociações. Ou ele firma uma posição puramente técnica ou política, mas tem que dizer por quê.
eBand - Apesar de ter sido anunciada agora, desde julho corria a informação da intenção da compra dos 36 caças da França.
Cavagnari - Exatamente. Mas no âmbito do Ministério da Defesa, mais precisamente do Comando da Aeronáutica, a proposta vencedora, tudo indica, seria a americana porque os americanos se abriram muito, por exemplo, a parte de tecnologia, senão eles iriam perder.
No caso do Super Tucano [da Embraer], um dos itens no pacote tecnológico que compramos dos EUA permitiu que evoluíssemos do Tucano para o Super Tucano. Mas [o pacote] dizia também que caberia aos EUA o papel de árbitro na venda, para evitar que prejudicasse seus interesses estratégicos. E a venda estava acertada entre Brasil e Venezuela. Os EUA a bloquearam e não pudemos vender. Até do papel de árbitro eles abriram mão nessa proposta nova.
Tem de se pesar as vantagens ou desvantagens políticas ou técnicas. A situação é que vai dizer se a decisão deve ser política ou técnica, a não ser que exista um equilíbrio entre as duas posições. Aquela proposta que fundamenta uma decisão política pode ser aceitável em termos técnicos. Uma proposta pode, de certo modo, secundarizar uma questão técnica.
eBand - Para o senhor, qual deveria ser priorizada: a questão técnica ou política?
Cavagnari - O pacote francês é irrecusável, mas a proposta americana é boa também. Na minha visão, – no momento, fora do governo e das Forças Armadas – o que se deve é abrir o guarda-chuva no campo comercial de compras de armamento. Se o Brasil tem uma proposta francesa muito boa e tem sido um cliente dos EUA, não existe a obrigação de fazer uma compra nos EUA, pode diversificar.
Desde a Segunda Guerra Mundial [1939-1945], depois durante todo o período da Guerra Fria até recentemente, sempre fomos clientes de material bélico dos EUA. É hora de abrir o Brasil para outros países. Nós já tivemos um momento de abertura: quando compramos os Mirage da França. Foi o início da abertura do mercado francês para o Brasil. Devemos cultivar esse mercado, como devemos também continuar cultivando o mercado americano e, se aparecer um produto melhor no Japão ou na Alemanha, que se compre. Aliás, conseguimos modernizar nossa primeira frota submarina com a Alemanha.
Mas isto tudo é teórico, a realidade política é outra, está tudo embaralhado. A desculpa que Marco Aurélio Garcia [assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais] deu para a tomada de decisão pelo francês é que os americanos embutem algumas travas nos pacotes. Mas nós o conhecemos, ele é totalmente anti-americano. Então, a posição dele é profundamente ideológica. Mas posições ideológicas não podem envenenar as negociações.
eBand - Este é o ano da França no Brasil. Quais os motivos para a aproximação entre os dois países?
Cavagnari - Há um motivo político, porque o Brasil quer cortar certas amarras com os EUA. No século 19, tivemos uma grande aproximação com a Europa. Mandamos militares fazer estágio na Alemanha e oficiais navais à Inglaterra. Depois da 1ª Guerra Mundial [1914-1918], da qual a França saiu vencedora, continuamos enviando oficiais para a Grã Bretanha e passamos a mandar os do Exército para a França.
O resultado deste intercâmbio do Exército brasileiro com o francês foi a criação de uma missão militar francesa que ficou de 1919 a 1939, quando a França foi invadida pela Alemanha. Essa missão veio dentro de um pacote que pretendia modernizar as Forças Armadas e esteve nas escolas militares avançadas - as escolas de aperfeiçoamento dos oficias - e também na Escola de Estado Maior. Os franceses eram tutores nesse período. Então, a influência francesa, no Exército, e inglesa, na Marinha, se enfraqueceram durante a 2º Guerra Mundial, quando aconteceu nossa aproximação com os EUA. Na guerra, já estávamos operando dentro da doutrina militar americana.
Então, a importância dos EUA nesse relacionamento é muito grande e mais recente - e a importância da França é histórica. O que nós queremos não é ter uma influência francesa novamente, nem continuar com a americana. Queremos uma relação de igual para igual com os dois países na área militar. O Brasil tem que beber em vários centros que estão mais desenvolvidos em termos militares. Mas esse imbróglio da França deixou esse processo conturbado.
As Forças Armadas hoje ampliaram o horizonte de aproximação [aos outros países], tendo em vista o conhecimento e o campo operacional e tático. Deve-se discutir algo que vem de fora com o que aqui se produz. Também em termos de reequipamento das Forças Armadas que estão saindo agora de um processo de desmonte que vem desde 1990.
eBand - A escolha pela França estaria relacionada à preocupação brasileira com o equilíbrio internacional?
Cavagnari - Envolve outras variáveis. Primeiro, o aspecto ideológico da política brasileira. A própria diplomacia do país está agindo ideologicamente. A única instituição que não esta agindo ideologicamente são as Forças Armadas. Isso não é bom.
Há uma postura ideológica desse governo em relação à política internacional. Não há um choque com os EUA, mas as posições não estão muito bem definidas. Haja vista a aproximação do Brasil com a Venezuela. O país pode se relacionar com quem quiser, mas não podemos brigar desnecessariamente com a maior potência do hemisfério.
A Unasul [União das Nações Sul-Americanas], por exemplo, é uma ideia do [presidente da Venezuela, Hugo] Chávez, que o Brasil encampou. Em seguida, o Brasil deu a ideia do Conselho Sul-Americano de Defesa. Então, foi criada a Unasul como se fosse um afastamento, uma expulsão da OEA [Organização dos Estados Americanos] da América do Sul. Duas instituições regionais que atendem a interesses estratégicos dos países e querem marcar uma postura de independência em relação aos interesses americanos. Um fórum que tem apenas os países da região e nenhuma potência de fora, o Conselho Sul-Americano, vai ter muito mais relevância, na visão desses países que o criaram, do que a [Junta] Interamericana de Defesa, em Washington.
Só que os EUA balançaram isso. Eles mostraram que ainda são a potência hegemônica do hemisfério. Recriaram a Quarta Frota, que foi desativada na Guerra Fria, logo depois que o Brasil e a Argentina tomaram a iniciativa de transformar o Atlântico Sul em zona de paz e cooperação, o que foi feito por resolução da ONU (Organização das Nações Unidas). Com isso, esperava-se que nenhuma potência estrangeira entrasse na região. Agora, bases foram criadas na Colômbia, integralmente alinhada com os EUA. É um sinal para o Brasil de que os EUA ainda podem agir na América do Sul em função de seus interesses estratégicos.
eBand - Mas o governo anterior também era ideológico, não?
Cavagnari - Sim, anticomunista. Há uma posição desse governo em relação ao americano diferente dos governos anteriores. Há um tempero de esquerdismo. O governo do Fernando Henrique Cardoso [1995-2003] não era anticomunista, mas tinha ciência do que eram os Estados Unidos no hemisfério e teve uma diplomacia muito controlada, com muita precaução – este, não. O problema é para nós, não para eles. Quem está se sentindo incomodado com a Quarta Frota e com as bases é este governo. Não somos nós, o povo não está nem aí.
eBand - O Brasil tem mais chance de se tornar membro permanente do Conselho de Segurança (CS) da ONU após aumentar seu poderio militar?
Cavagnari - Claro. Para ser membro permanente do CS tem que ser reconhecido como potência militar. Os EUA são uma grande potência mundial, e o restante são potências regionais. O Brasil caminha para isso. Quando se atinge o status de grande potência é porque também é potência militar, seja mundial ou regional. Tem que ter força e voz. E a voz para resolver conflitos é a voz das armas também.
eBand - O acordo pode incentivar uma corrida armamentista na América Latina?
Cavagnari - Não vejo uma corrida, mas existe, sim, um rearmamento da América Latina. O Chile sempre comprou e renovou esse material e tem um Exército relativamente moderno. A Colômbia, a mesma coisa, por força do narcotráfico. A Venezuela está se armando. Agora, o Brasil tem um perfil elevado político, tecnológico e econômico, mas o perfil militar não está alinhado. E a indústria bélica, quanto mais se desenvolver, produz riqueza. Gera emprego de mão-de-obra altamente qualificada.
Fonte: eBand - Foto: Divulgação/Boeing