A escassez de crédito não deixou incólume o setor aéreo mundial. Em outubro de 2008, a expectativa era de que faltariam US$ 20 bilhões no mercado para a compra de aviões novos. Pela primeira vez em três anos, a Boeing Capital Company (BCC), braço financeiro da fabricante americana de aeronaves, foi obrigada a financiar os clientes de sua controladora. Normalmente, a empresa apenas estrutura os empréstimos, que são oferecidos por outras instituições. Com a crise, a BCC acelerou a busca por fontes de crédito para os compradores de aviões da Boeing. Em entrevista à DINHEIRO, o vice-presidente da BCC, Tim Myers, falou da procura por substitutos locais que possam ocupar no mercado o espaço de bancos europeus e americanos. Segundo ele, instituições de Brasil e China são alternativas em potencial.
Tim Myers, vice-presidente da Boeing Capital Compa
DINHEIRO - O que o traz ao Brasil?
TIM MYERS - Três coisas: a necessidade de fortalecer a relação da Boeing com as companhias aéreas, estreitar nossos laços com bancos e instituições financeiras locais e, principalmente, tentar encontrar fontes alternativas de financiamento para os compradores de nossos aviões.
DINHEIRO - Mas a função da BCC não é exatamente oferecer esse financiamento?
MYERS - Não é algo que goste de ver publicado na imprensa, mas a verdade é que nossa função é oferecer financiamento a clientes quando não há mais ninguém financiando compra de aviões no mercado. Por três anos e meio, não houve necessidade de atuarmos. Mas em outubro do ano passado tudo mudou e neste ano já tivemos que financiar alguns clientes. No fundo, somos a última opção para as companhias aéreas conseguirem recursos. Mesmo porque, se tiverem alternativa, é melhor para elas, já que, em comparação a bancos e instituições tradicionais, nossas taxas não são competitivas, nem é o objetivo que sejam.
DINHEIRO - Desde que voltou ao mercado, quanto a BCC já financiou?
MYERS - Em outubro de 2008, o mercado estimava que faltaria algo como US$ 20 bilhões em financiamentos para a compra de aviões em todo o mundo, e que por isso as fabricantes teriam que reduzir em 20% sua produção. Nós decidimos reavaliar isso internamente. Após consultar instituições de crédito e os clientes e analisar a estimativa de mercado da própria Boeing, chegamos a um número diferente. Para nós, haveria uma falta de zero a US$ 4,5 bilhões em todo o mundo. Desse total, US$ 1 bilhão seria a fatia da Boeing e, portanto, teria que ser financiada pela BCC. Até agora, financiamos apenas US$ 600 milhões, o que é bastante positivo, pois está dentro de nossas expectativas.
DINHEIRO - Se não há problema de recursos, qual tem sido a dificuldade para as empresas aéreas encontrarem financiamento?
MYERS - O problema não é só a escassez de recursos, mas a própria economia. Por um lado, as companhias têm sofrido com rentabilidades mais baixas e menores índices de ocupação. Isso afeta diretamente seus negócios e sua classificação de crédito. Por outro lado, os bancos estão mais conservadores, muitos deles passando por mudanças profundas em seus modelos de negócio, cujo efeito é uma redução no volume de recursos para o financiamento de aviões.
DINHEIRO - Foi nesse contexto que a BCC voltou a financiar a compra de aviões da Boeing?MYERS - Uma das metas da BCC é que nenhum avião saia da linha de produção sem um plano de financiamento já aprovado. Isso não é tão fácil como parece. No caso de empresas como (a brasileira) Gol, (a australiana) Qantas e outras do mesmo nível, não há dificuldade em encontrar alguém disposto a financiar a operação. Mas há outras companhias cujo perfil não facilita esse trabalho. É aí que entramos. A nossa intenção, porém, é que todos os financiamentos sejam feitos por terceiros.
DINHEIRO - A intenção da BCC é sair desse mercado o quanto antes?MYERS - Nosso objetivo não é sair do mercado completamente, pois é um negócio rentável, embora essa não seja sua principal função para a Boeing. Somos uma ferramenta que auxilia nas vendas dos aviões da companhia. Além disso, por vezes vale a pena pagar para ter a experiência num negócio como esse, que pode ajudar a elevar os retornos sobre nossa frota própria, que hoje conta com 340 aeronaves. Também porque há alguns ativos que simplesmente ficarão empacados na fábrica se não houver alguém financiando os compradores. A dificuldade, claro, é saber onde colocar o dinheiro, se na produção industrial ou na empresa financeira. O negócio da Boeing é fabricar aviões, não ser um banco ou uma empresa de leasing. Não podemos estrangular a produção em nome dos negócios na área financeira.
DINHEIRO - E as empresas de leasing aeronáutico? Elas não podem atender à demanda por crédito das aéreas?MYERS - As empresas de leasing estão numa situação muito delicada. Pelo menos muitas delas estão. Se antigamente elas ofereciam liquidez ao sistema, hoje elas tomam liquidez do mercado. Elas estão competindo por recursos de bancos com as próprias companhias aéreas para as quais fazem os leasings de seus aviões. E, em média, por região, elas são responsáveis, ou eram, por 30% a 40% dos financiamentos às aéreas.
DINHEIRO - O que mudou para elas?MYERS - Seu próprio modelo de negócio teve de ser revisto. O que elas geralmente faziam era comprar os aviões dos fabricantes utilizando financiamentos de curto prazo, de dois a três anos. Depois disso, criavam "pacotes" de 20 a 30 aviões que, então, eram securitizados no mercado (a dívida era "vendida" a uma empresa securitizadora). Além de tirar o risco da operação, isso trazia fundos suficientes para rolar as dívidas de curto prazo. No fim, criava disponibilidade de caixa para adquirir novos aviões. Isso não existe mais. A securitização está muito cara, o custo do dinheiro explodiu e o retorno sobre o capital investido despencou.
DINHEIRO - Todas as empresas de leasing estão nessa situação?MYERS - Nem todas. Algumas conseguiram se manter por ter controladores que enfrentaram bem a crise, como é o caso da GECAS, que é parte da GE. Mas outras, como a International Lease Finance Corporation (ILFC, a maior companhia de leasing aeronáutico do mundo), foram bastante afetadas. No caso dela, por conta dos problemas com sua controladora, a seguradora AIG. Mesmo com um ótimo portfólio de produtos e bom histórico de crédito, a ILFC não tem mais de onde tirar recursos, por conta das dificuldades na AIG. Isso, para nós, é muito perturbador, pois ela é uma das maiores compradoras de aviões Boeing.
DINHEIRO - Como contornar a falta de crédito, agora que bancos e empresas de leasing estão em dificuldades?MYERS - Uma das formas é ampliar a rede de instituições que oferece financiamentos e explorar outras áreas, como temos feito. Se nos anos 1960 e 1970 os bancos americanos dominavam esse mercado, nos anos 1980 foram os japoneses e, dos anos 1990 para cá, os europeus. Mas o modelo de negócios desses bancos mudou. Agora é preciso encontrar instituições locais que estejam dispostas a financiar a compra de aviões e ajudá-las a entrar nesse mercado. A América Latina, em especial o Brasil, e a China têm instituições que podem cumprir esse papel.
DINHEIRO - Por que essas regiões?MYERS - Na América Latina porque o financiamento oferecido por bancos para a compra de aviões é mínimo. Isso apesar do fato de que, nos próximos 20 anos, a região - especialmente Brasil e México - deve comprar cerca de 1.700 jatos de passageiros, em avaliação feita pela Boeing. Como não se compravam aviões na região até pouco tempo atrás, não havia necessidade de bancos oferecerem crédito para isso. Mas agora a situação está mudando. Já na China, o caso é que há muitos recursos, mas poucos contatos fora do país, e isso pode ser mais bem explorado.
DINHEIRO - Como assim?
MYERS - Instituições chinesas financiam 99,9% das compras de companhias locais. Mas elas têm mais recursos que demanda. Esse dinheiro poderia ser emprestado no exterior. Há algum tempo a própria BCC tenta promover um fluxo de financiamentos entre a China e o restante do mundo. Graças a isso, eles já financiaram empresas como a Lufthansa e a British Airways. É claro, são companhias líderes, mas é um começo para que os chineses passem a financiar outras empresas, que não necessariamente sejam líderes mundiais.
DINHEIRO - Quais os riscos que esses bancos locais teriam que assumir ao entrar nesse mercado?MYERS - Não é algo complicado, mesmo porque essa atividade é feita com base em ativos reais, aviões, e não em ativos financeiros, como carteiras de empréstimos e crédito. E também não são prédios. Se alguém deixar de pagar, podemos pegar o avião e voar para o próximo cliente. Se o banco não souber fazer a retomada do bem ou mesmo não tiver um local onde colocá-lo, podemos ajudar. Normalmente, apresentamos empresas que são especializadas nesse tipo de serviços. Mas, claro, nós mesmos podemos fazer, caso nos peçam.
DINHEIRO - A ideia da BCC é ser um facilitador, inclusive no Brasil?MYERS - Nosso trabalho será criar uma espécie de base de dados com informações sobre empresas que conhecemos que podem ajudar os bancos em suas operações, e sobre companhias que podem se tornar suas clientes.
DINHEIRO - O trabalho da BCC tem funcionado?MYERS - A (europeia) Airbus e outras fabricantes copiaram exatamente o que fazemos, o que mostra que provavelmente estamos fazendo bem nosso trabalho na área financeira.
Fonte: José Sergio Osse (IstoÉ Dinheiro) - Foto: Murillo Constantino (Ag. IstoÉ)