Quando a aeromoça, na hora do embarque, chamou os passageiros com prioridades, um senhor caminhou para a frente da fila. Levou logo uma bronca de um empedernido executivo, que bloqueava com seu terno azul marinho e gravata listrada, pasta de couro e sapato de bicão, toda a entrada. “Tem que entrar na fila”. Exclamou e reclamou alto, o executivo.
A mãe com um carrinho, a criança e a babá, que também caminhavam para a frente da fila, acreditando-se prioridades, nem ousaram mais se aproximar. Uma jovem com dificuldade de andar parou onde estava.
“Mas eu sou idoso, afirmou o senhor”. “E eu sou ouro!”, retrucou de alto e bom som, o irremovível executivo. E não se mexeu, como se de ouro mesmo fosse.
A aeromoça, desconsolada só pode dizer: “Hoje em dia, existe mais ouro e diamante e cartão vermelho e azul, do que passageiros comuns”. Ela não sabia a quem dar prioridade. Lavou as mãos.
Com a multiplicação de programas de fidelidades das empresas de aviação, quase todo mundo hoje é prata, ouro, diamante, smiles, star alliance, cartão vermelho, cartão azul e por aí vamos. Nas rotas de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, quase todo mundo é autoridade ou prioridade. Daí esta crescente confusão. Afinal, quem é prioritário?
Prioridade é uma palavra que só se conjuga no singular. Do contrário, perde o sentido. A palavra se suicida. Quem é a prioridade das prioridades?
A resposta é simples e é jurídica. Existem prioridades legais, estabelecidas por lei e prioridades contratuais, estabelecidas pelo contrato entre a empresa e o passageiro, seu cliente, consumidor.
Não pode a prioridade contratual se sobrepor à prioridade legal. Esta é de interesse público. Foi estabelecida pelo Congresso Nacional. Aquela é de interesse privado, entre a empresa e seu cliente. Por que então esta crescente confusão na hora dos embarques?
Os passageiros se multiplicaram, os programas de fidelidade também. Trata-se de fenômeno quantitativamente novo. Acresça que o Brasil é um dos países com legislação que mais protege crianças, idosos e pessoas em situações especiais. O Brasil está levando a serio, cada dia mais, esta proteção de direitos humanos.
Finalmente, tudo indica que a Anac ainda não se pronunciou, orientou e exigiu das empresas de aviação que adaptem suas rotinas a estes novos procedimentos.
A Portaria 656/GC-5, de 2000, do Comandante da Aeronáutica, que aprova as condições gerais de transporte aéreo determina que “as empresas aéreas deverão assegurar prioridade nos atendimentos aos passageiros com idade igual ou superior a 65 anos, aos doentes, aos deficientes físicos e mentais, às senhoras grávidas e aos passageiros acompanhados de crianças menores de 12 anos”.
Todos esses mencionados na Portaria 656/GC-5 da Aeronáutica prevaleceriam então sobre executivos ouro, diamante, platinum ou sorridentes.
Seria importante que a Anac e as companhias aéreas clarificassem esta situação e orientassem seu pessoal para melhor cumprimento da lei. Não somente para educar o consumidor, que em sua imensa maioria, inclusive de executivos, acatará, como tem acatado, e diria mesmo com certo orgulho civilizatório, estas prioridades. Mas também para conter a obsessão competitiva de alguns, poucos é verdade, fidelizados, apressados e platinados de vencer na vida a qualquer custo.
Inclusive, à custa da lei, nas filas dos aeroportos. São pessoas que, lembrando Wilde, sabem o preço de tudo e o valor de nada.
A fila do avião é um dos lugares onde a sociedade concretiza sua prioridade pelos valores que viabilizam a convivência entre todos: solidariedade ou competição selvagem?