Apesar dos avanços nas investigações de uma das maiores catástrofes aéreas da história da aviação intercontinental, dezenas de dúvidas ainda persistem em relação à tragédia com o voo AF 447, que caiu no Oceano Atlântico em 31 de maio de 2009, matando 228 pessoas. A recuperação das caixas-pretas e o resgate parcial dos corpos das vítimas a cerca 4 mil m de profundidade, quase dois anos depois do acidente, ajudaram a encontrar caminhos para explicar porque a viagem foi interrompida. Algumas perguntas, no entanto, podem jamais ser esclarecidas.
Os passageiros sentiram a iminência do acidente?
Aos familiares das vítimas, cabe a questão mais sensível de toda a investigação: os passageiros sabiam que o Airbus A330 da Air France estava prestes a cair? Ninguém saberá responder. Desde o princípio, o BEA (Escritório de Investigação e Análises), órgão francês responsável por apurar as causas da queda, foi vago quando abordado sobre o assunto.
"Não saberemos jamais se os passageiros sofreram", afirmou ao Terra a assessora de imprensa do BEA, Martine Del Bono. As gravações das caixas-pretas, que poderiam ter registrado sinais de desespero, captam apenas os sons da cabide de comando. A investigação assegura que nenhum barulho de fora da cabine é ouvido.
Entretanto, pilotos experientes afirmam que, de acordo com os dados conhecidos dos últimos quatro minutos de voo, os movimentos bruscos da aeronave - que perdeu 37,9 mil pés de altitude (11,5 mil m) em apenas três minutos e 30 segundos - podem ter sido sentidos pelos passageiros que estavam acordados no momento em que o avião perdeu a sustentação, ou seja, quando começou a cair. Os sinais físicos da perda de sustentação são evidentes: o avião treme muito mais do que em uma turbulência, mas, para uma pessoa sem conhecimentos sobre o assunto, a sensação pode ser semelhante à de atravessar uma nuvem carregada.
"Hoje, eu acho que não leva a nada querer saber se os nossos familiares sofreram ou não. Mas há muitos que ainda se atormentam com essa dúvida", disse Robert Soulas, presidente da associação de familiares das vítimas francesas do acidente. "Já eu não vou descansar enquanto não souber toda a verdade sobre as causas do acidente e não vir os responsáveis punidos."
Todos os passageiros morreram no choque contra a água?
Esta dúvida passou a incomodar uma parte das famílias de vítimas depois da descoberta dos corpos no fundo do Oceano Atlântico, em abril do ano passado. Conforme descrição dos investigadores, alguns restos mortais impressionavam não somente pelo estado de conservação, mas pela posição em que foram encontrados: estavam presos ao assento, com os cintos de segurança.
O indício leva Maarten van Sluys, um dos fundadores da associação de familiares brasileiros, a acreditar que parte dos passageiros não tenha falecido no momento do choque, mas sim em consequência do afundamento da aeronave. "A parte traseira do avião foi recuperada quase intacta do fundo do mar", lembrou Sluys. "O problema é que, infelizmente, não foi possível realizar exames que apontassem a causa da morte das vítimas resgatadas." Da mesma forma, não se sabe quantos restos mortais foram localizados, mas não puderam ser retirados do local onde estavam os destroços.
Por que pilotos realizaram manobras erradas?
No último relatório oficial das investigações da tragédia, o BEA indica que uma série de manobras equivocadas, combinadas à falha do sensor de velocidade, levou à queda do avião. A divulgação dos diálogos registrados na caixa-preta parece confirmar esta hipótese: as gravações mostram os dois copilotos - que comandavam o Airbus no momento do acidente - perdidos, enquanto executam uma sequência de comandos aparentemente contrários aos que deveriam ter sido feitos em uma situação idêntica. A frase "não sei o que está acontecendo" se repete ao longo de toda a queda.
Mas esta versão da história está longe de satisfazer todas as partes envolvidas nos acontecimentos daquele 31 de maio de 2009. Por enquanto, ainda não foi esclarecido o quanto o congelamento das sondas de velocidade, que ficam na parte externa, afetaram as informações transmitidas aos pilotos - é a velocidade que determina a maioria dos passos automáticos do Airbus quando viaja em nível de cruzeiro. A resposta poderá aparecer no relatório final da investigação do acidente, a ser divulgado no próximo dia 5 de julho. Os investigadores que coordenam a apuração, Jean-Paul Troadec e Alain Bouillard, não se manifestarão à imprensa antes disso.
"A verdade é: nós não sabemos o que os meus colegas tinham diante dos olhos para agir daquele jeito. E jamais saberemos", rebate Gérard Arnoux, piloto da Air France há 17 anos e uma das vozes mais discordantes da versão oficial dos fatos. Arnoux ressalta que a caixa-preta que registra os parâmetros de voo grava apenas os dados de um dos copilotos, e não dos dois, portanto vai ser muito difícil provar que não havia informações ainda mais incoerentes sendo transmitidas ao segundo copiloto, em consequência do congelamento das sondas. Conforme esta análise, isso poderia explicar a contradição entre o que os dois pilotos faziam para tentar retomar o controle do avião.
O comandante poderia ter retomado o controle do avião?
Outra questão que divide tanto as famílias quanto os especialistas é sobre a imobilidade do comandante do voo AF 447. Marc Dubois, 58 anos, 11 mil horas de voo no currículo, descansava no momento do acidente, 10 minutos após entregar os comandos para os copilotos David Robert e Pierre-Cedric Bonin, ambos de 32 anos. Conforme as gravações das caixas-pretas, o comandante volta à cabine quase dois minutos após o início dos problemas - e praticamente não reage ao que visualiza.
"Conversei com dezenas de colegas pilotos e perguntei o que eles fariam se estivessem no lugar de Marc Dubois. A resposta foi unânime: tiraria o copiloto e tomaria o comando", escreve Jean-Pierre Otelli, piloto autor de um livro de análise do acidente, no qual a integralidade dos diálogos na cabine do AF 447 é publicada. Porém, ninguém é capaz de afirmar com certeza se Dubois, com sua experiência, poderia ter evitado a queda do avião se tivesse sido mais reativo - tudo porque, quando ele retornou à cabine, a situação já estava fora de controle. "A própria fabricante admite que quando um Airbus perde sustentação, é quase impossível recuperá-lo", disse ao Terra um piloto da Air France que preferiu não se identificar.
O acidente do AF 447
O voo AF 447 da Air France saiu do Rio de Janeiro com 228 pessoas a bordo no dia 31 de maio de 2009, às 19h (horário de Brasília), e deveria chegar ao aeroporto Roissy - Charles de Gaulle de Paris no dia 1º às 11h10 locais (6h10 de Brasília). Às 22h33 (horário de Brasília) o voo fez o último contato via rádio. A Air France informou que o Airbus entrou em uma zona de tempestade às 2h GMT (23h de Brasília) e enviou uma mensagem automática de falha no circuito elétrico às 2h14 GMT (23h14 de Brasília). Depois disso, não houve mais qualquer tipo de contato e o avião desapareceu em meio ao oceano.
Os primeiros fragmentos dos destroços foram encontrados cerca de uma semana depois pelas equipes de busca do País. Naquela ocasião, foram resgatados apenas 50 corpos, sendo 20 deles de brasileiros. As caixas-pretas da aeronave só foram achadas em maio de 2011, em uma nova fase de buscas coordenada pelo Escritório de Investigações e Análises (BEA) da França, que localizou a 3,9 mil m no fundo do mar a maior parte da fuselagem do Airbus e corpos de passageiros em quantidade não informada.
Após o acidente, dados preliminares das investigações indicaram um congelamento das sondas Pitot, responsáveis pela medição da velocidade da aeronave, como principal hipótese para a causa do acidente. No final de maio de 2011, um relatório do BEA confirmou que os pilotos tiveram de lidar com indicações de velocidades incoerentes no painel da aeronave. Especialistas acreditam que a pane pode ter sido mal interpretada pelo sistema do Airbus e pela tripulação. O avião despencou a uma velocidade de 200 km/h, em uma queda que durou três minutos e meio. Em julho de 2009, a fabricante anunciou que recomendou às companhias aéreas que trocassem pelo menos dois dos três sensores - até então feitos pela francesa Thales - por equipamentos fabricados pela americana Goodrich. Na época da troca, a Thales não quis se manifestar.
Fonte: Lúcia Muzell (Terra) - Foto: AFP