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sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

História: Muro de Berlim - A história secreta de como o Muro foi erguido pela Alemanha Oriental e a URSS

HISTÓRIAS DA GUERRA FRIA

As autoridades da Alemanha Oriental começaram a erguer de forma abrupta o muro de Berlim em 1961
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética dividiram a Alemanha em quatro zonas de ocupação. A área ao leste, conhecida como Alemanha Oriental, ficou sob influência da União Soviética - posteriormente chamada de República Democrática Alemã (RDA). A oeste, as áreas controladas por Estados Unidos, Reino Unido e França foram unificadas em 1948, na chamada Alemanha Ocidental - posteriormente, República Federal Alemã (RFA). Berlim, embora localizada na área soviética, também fora dividida em quatro zonas, sob a influência desses quatro países. Abaixo, Patrick Major, professor de História Moderna na Universidade de Reading, conta a história do Muro de Berlim, que separou Berlim Oriental, sob controle soviético, de Berlim Ocidental, do bloco capitalista.

A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, Berlim se tornou um espaço peculiar. Era uma cidade "ilha", dividida em quatro, dirigida pelos quatro ocupantes, cada um com seu próprio setor, mas localizada dentro da zona soviética e a mais de 160 quilômetros das áreas ocidentais dos Estados Unidos, Reino Unido e França.

Em represália pelas tentativas de formar o Estado da Alemanha Ocidental, separado em 1948, Josef Stálin (líder da União Soviética) havia explorado a posição exposta de Berlim Ocidental, cortando suas ligações terrestres com o oeste.

Mas Berlim Ocidental eventualmente se converteu em um espinho permanente para a Alemanha Oriental que a circundava. A CIA e o MI6 (agência de inteligência britânica) a utilizavam como base de espionagem avançada; sua economia atraía dezenas de milhares de viajantes da Alemanha Oriental.

Na noite de 13 de agosto de 1961, essa rachadura na Cortina de Ferro se fechou bruscamente e de forma dramática.

A partir de 1h, cordões humanos da polícia fronteiriça da Alemanha Oriental e milicianos desceram até o limite do setor soviético para enfrentar a polícia de Berlim Ocidental e as tropas americanas, britânicas e francesas.

Após a colocação de arame farpado, foi a vez de estruturas de concreto
Grandes depósitos de arame farpado, malhas metálicas e postes de concreto foram erigidos rapidamente dentro do setor leste, às vezes aproveitando postes de iluminação e trilhos de bondes para fazer barreiras improvisadas.

Quatro dias depois, sem reação ocidental, as autoridades da Alemanha Oriental começaram a construir uma estrutura mais permanente com blocos de cimento e lajes de concreto: o Muro de Berlim propriamente dito.

De um só golpe, a República Democrática da Alemanha (RDA) pôs fim a um êxodo humano, que estava em marcha desde 1945, e havia alcançado proporções epidêmicas no verão de 1961. Apelidado de Republikflucht, ou "fuga da República", um em cada seis alemães do leste se mudaram para o oeste, a maioria via Berlim.

Nem com cenouras


Desde 1958, as autoridades comunistas estavam alarmadas diante do número de médicos, professores e engenheiros que fugiam.

O muro, de súbito, separou pessoas que antes eram vizinhas
Apesar da política de cenoura e chicote (metáfora política que faz referência a um burro tratado na base da cenoura e do chicote, indicando uma política que oferece incentivos, por um lado, e punição, por outro), não conseguiam dissuadir os desertores enquanto a fronteira estava aberta, como era exigido pelo Estado quadripartido especial de Berlim.

Desde maio de 1960, a Stasi, a temida polícia secreta da Alemanha Oriental, havia sido recrutada, mas só conseguiu interceptar um de cada cinco pessoasque tentavam escapar para a Alemanha Ocidental. E concluiu: "Um fechamento total de Berlim Ocidental não é possível e, por isso, não se pode deixar o combate da Republikflucht apenas aos órgãos de segurança da RDA".

Era preciso, argumentavam, uma solução mais radical, que implicasse um isolamento físico de Berlim Ocidental, uma válvula de mão única que mantivesse os alemães orientais no leste, mas que não permitisse acesso do ocidente ao oriente.

Briga com Kennedy


Os alemães orientais haviam contemplado em privado essa ideia ao longo da década de 1950, mas haviam sido vetados pelo comando soviético em favor de uma solução diplomática.

Em julho de 1961, Nikita Khrushchev concordou com o pedido do representante da
Alemanha Oriental, Walter Ulbricht, para construir uma barreira física separando Berlim
Em maio de 1961, o líder da Alemanha Oriental, Walter Ulbricht, solicitou formalmente a Moscou que fechasse a fronteira.

Mas foi apenas depois do confronto entre o primeiro-ministro soviético, Nikita Khrushchev, com o novo presidente americano, John F. Kennedy, em junho, seguida por um intransigente discurso exibido na televisão feito por Kennedy, em finais de julho, que o líder soviético finalmente cedeu.

A decisão de construir um muro teve que ser levada a cabo em segredo absoluto, a fim de evitar uma grande fuga de pessoas.


Um anel de ferro


No dia seguinte do discurso de Kennedy, em 26 de julho, Khrushchev ordenou ao embaixador soviétivo que dissesse a Ulbricht que tinham que "usar a tensão nas relações internacionais para rodear Berlim com um anel de ferro".

"Isso deve ser feito antes de concluir um tratado de paz."

Por segurança, os britânicos colocaram do lado ocidental um arame farpado próximo da Porta de Brandemburgo
De fato, o líder soviético provocou um curto-circuito na crise diplomática que ele próprio desencadeara em novembro de 1958, ao emitir um ultimato às potências ocidentais para desalojar Berlim Ocidental ou aceitar um acordo de paz que os obrigaria a reconhecer o que consideravam um Estado fantoche soviético ilegítimo: a chamada "República Democrática Alemã".

A soberania da RDA havia dado aos alemães orientais o controle direto sobre as as estradas entre Berlim Ocidental e Alemanha Ocidental, assim como sobre os corredores aéreos.

A Alemanha Oriental efetivamente havia podido começar um segundo bloqueio de Berlim.

A discreta operação rosa


O discurso de Kennedy havia deixado claro que os Estados Unidos estavam dispostos a ir à guerra para defender Berlim Ocidental, mas não houve qualquer compromisso com uma Berlim Oriental aberta. Implicitamente, haviam dado passagem livre aos comunistas em seu setor.

O então presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, havia deixado
clara sua disposição de ir à guerra para defender Berlim Ocidental
A partir de então, "a Operação Rosa" - o plano para cortar Berlim Ocidental - se desenvolveu rapidamente, sob o mais estrito segredo. Apenas cerca de 60 funcionários da RDA sabiam da operação.

O chefe de operações em terra era Erich Honecker, número dois do partido comunista da Alemanha Oriental, destinado a se converter em líder da RDA uma década mais tarde. Em 1961, era o secretário de segurança do Politburo, responsável pela segurança interna e militar.

O fechamento da fronteira seria levado a cabo a partir de um sábado à noite, até o domingo de manhã, para evitar possíveis paralisações nas fábricas. O partido tinha duras recordações das greves massivas de 17 de junho de 1953.

Para o 24 de julho, a área de segurança do partido havia calculado que o fechamento total requeriria 27 mil dias-homens de trabalho e quase 500 toneladas de arame farpado.

Anel de tanques


Os poucos escolhidos do Ministério do Interior se reuniram na escola de formação do Volkspolizei, nos arredores de Berlim, sob as ordens de Willi Seifert, comandante das tropas do interior e também ex-prisioneiro de Buchenwald - portanto, com grande experiência "de dentro" de instalações de segurança máxima.

Apenas alguns poucos funcionários da RDA, incluindo o futuro líder Erich Honecker,
conheciam os planos para construir o muro
Pouco a pouco, os materiais para a construção das cercas foram secretamente transportados para a capital, vindos de outras regiões fronteiriças e unidades policiais. Mas não se tratava apenas de uma ação policial.

Em finais de julho, o chefe do Estado-Maior das forças soviéticas, o tenente-geral Ariko, se reuniu com seu par na Alemanha Oriental, o major Riedel, para discutir a coordenação do "anel de ferro" dos tanques soviéticos e alemães orientais, que proporcionaria uma força de dissuasão a 1,6 quilômetro das unidades policiais.

O Exército começou o planejamento conspiratório em Schloß Wilkendorf, a nordeste de Berlim, onde o ministro da Defesa Heinz Hoffmann, Riedel e outros 11 oficiais traçaram os planos para um avanço no mais estrito silêncio de rádio, detalhando até a necessidade de amortecer o som dos tanques.

Ocidente despistado


Manter a operação em segredo também era importante já que havia muita especulação sobre o quanto o Ocidente sabia de antemão.

Soviéticos e alemães orientais implantaram um "anel de ferro" com tanques, em apoio às obras do muro
Os americanos tinham um superespião no Kremlin, Oleg Penkovsky, que em 9 de agosto soube da ação iminente, mas não pode transmitir a informação antes do evento.

Estimativas prévias de inteligência da CIA, no outono de 1957, por exemplo, haviam previsto o possível fechamento de fronteiras. O Comitê Conjunto de Inteligência Britânico chegou a conclusões similares em fevereiro de 1959.

Em 1961, no entanto, os analistas da CIA estavam mais preocupados com o que poderia ocorrer se os soviéticos tentassem repetir o bloqueio de 1948 para expulsar os aliados de Berlim ocidental, atacando as rotas de transporte.

Também houve relatos de acúmulo de arame farpado, mas isso não era algo novo. E, como a maioria das avaliações de inteligência, o problema era uma sobrecarga de informação. As missões militares dos aliados ocidentais, que poderiam contar com inteligência abertamente, não encontraram nenhuma evidência de ação iminente.

Como os americanos informaram em 2 de agosto: "Situação em grande medida igual à da semana passada".

Em 12 de agosto, os britânicos também descartaram soluções drásticas. "Os russos provavalmente estão mais preocupados com os riscos de distúrbios se a rota de escape for completamente cortada do que com o dano atual à RDA".

Uma opção pouco clara


A evidência que veio à luz na Alemanha Ocidental tampouco é conclusiva.

O chanceler da Alemanha Ocidental, Konrad Adenauer, havia sido advertido sobre a
importância que Berlim ocidental tinha para o regime comunista
O Bundesnachrichtendienst (BND), o serviço secreto da República Federal da Alemanha, tinha uma grande rede de informantes anticomunistas na RDA.

Essa rede coletava informação de inteligência militar. Seu chefe, Reinhard Gehlen, afirmou em suas memórias que o BND havia informado sobre a ação antes que ocorresse. Seu informe de julho de 1961 efetivamente indicava que o fechamento das fronteiras era considerado como uma possibilidade real e iminente.

Apesar desses indicadores aparentemente ameaçadores, houve informes contraditórios.

A inteligência interna da Alemanha Ocidental, Verfassungsschutz, disse ao chanceler, Konrad Adenaue, que, ainda que "a ilha de Berlim Ocidental tenha se convertido em uma questão de vida ou morte para o regime comunista", restrições de viagem mais contundentes seriam "intoleráveis para toda a população".

Portanto, parece provável que a comunidade de inteligência sabia que o fechamento de Berlim era uma opção que o Leste estava considerando e planificando ativamente, embora não estivesse segura acerca da data que isso poderia ocorrer.

O momento e lugar correto


"A lição estratégica e tática mais importante da exitosa ação de 13 de agosto", como foi registrado na Stasi, "é a importância de manter em segredo o momento no tempo, como um requisito prévio decisivo para mais golpes exitosos contra o inimigo, no momento correto e no lugar correto".

Antes de uma reunião dos principais líderes do bloco oriental, em 1 de agosto, Ulbricht falou com Jruschov por duas horas ao telefone, em uma conversa descoberta há poucos anos em Moscou.

Walter Ulbricht e Nikita Khrushchev fizeram um acordo em segredo para a construção do muro
Depois de algumas piadas sobre o estado da coletivização da RDA, Khrushchev repetiu seu chamado para colocar "um anel de ferro ao redor de Berlim". "Creio que nossas tropas deveriam colocar o anel, mas suas tropas deveriam controlá-lo."

Ulbricht estava claramente muito preocupado com um embargo econômico ocidental contra a RDA e grande parte de seus comentários se referiam à situação econômica da Alemanha Oriental. Finalmente, os dois terminaram falando de segurança.

Khrushchev: "Li informes originais dos serviços secretos ocidentais que estimam que as condições para uma revolta amadureceram na RDA. Eles estão usando seus próprios canais para evitar que as coisas cheguem a uma revolta porque isso não conseguirá nada. Estão dizendo: não podemos ajudar e os russos vão esmagar tudo com tanques. Portanto, estão pedindo às pessoas que esperem até que as condições sejam adequadas. Isso é realmente correto? Não estou seguro e estou baseando-me apenas nos informes ocidentais".

Ulbricht: "Temos informação de que, de forma lenta mas segura, recrutando desertores e organizando a resistência, o governo de Bonn está preparando as condições para uma revolta que terá lugar no outono de 1961. Vemos os métodos usados pelo inimigo: a igreja organiza a retirada dos agricultores de coletivos, ainda que com pouco êxito; há ações de sabotagem... Uma revolta não é realista, mas há ações possíveis que poderiam nos causar um grande dano internacional".

Inclusive nessa etapa, Ulbricht parecia estar vislumbrando medidas graduais que requeriam preparação política. "Realize-o quando quiser", respondeu o líder do Kremlin. "Podemos coordenar a qualquer momento."

Mas Khrushchev estava mais inclinado à conspiração do que seu homólogo da Alemanha Oriental: "Antes da introdução do novo regime fronteiriço você não deveria explicar nada, já que isso apenas aumentaria o movimento de refugiados e poderia conduzir a uma debandada. Te daremos uma, duas semanas para que possa se preparar economicamente".

Walter Ulbricht queria que a construção do muro ocorresse de forma muito rápida
Khrushchev logo pleiteou o Estado das quatro potências de Berlim: deveria a divisão rodear a Grande Berlim, em vez de apenas os setores ocidentais? No entanto, Ulbricht se manteve firme: a cerca passaria pelo centro da cidade: "Por cima de tudo, tem que ser rápido".

Khrushchev confiava que o Ocidente não reagiria de forma exagerada: "Quando implementarmos esses controles, todos estarão satisfeitos. Além disso, terão uma mostra do poder que você detém". Ulbricht: "Sim, então conseguiremos obter a estabilização".

Apesar da conversa, uma questão de guerra e paz requeria o respaldo político do Pacto de Varsóvia. Ainda que, quando chegou a data da reunião, entre 3 e 5 de agosto, a sorte já estivesse lançada.

Já no primeiro dia, no que provavelmente foi uma reunião privada com Khrushchev, o líder da RDA havia elaborado os elementos essenciais do que estava por vir, e para isso tinha uma data: 13 de agosto. "Nós brincamos entre nós, porque o Ocidente supõe que o 13 é um dia de azar", recordou Khrushchev mais tarde. "Brinquei que, para nós e para todo o campo socialista, seria um dia muito afortunado."

Ainda que o muro tenha sido construído para evitar que cidadãos da Alemanha Oriental
fugissem para o Ocidente, muitas pessoas seguiram tentando desertar
Em 12 de agosto, por volta das 16h, Ulbricht assinou a ação iminente e logo em seguida convocou os funcionários do governo e do partido para irem a sua residência rural, no lago Dölln, ao norte de Berlim, para dar um passeio e jantar.

Falando com o embaixador soviético, o líder do partido da Alemanha do Leste, em um raro episódio de humor, brincou dizendo: "Não os deixarei ir até que a operação termine".

Os líderes reunidos estavam um pouco desconcertados pela onda de piadas e interlúdios musicais, até que ao redor das 21h30 Ulbricht repentinamente os convocou para uma sessão de emergência do Conselho de Ministros para aprovar as medidas que estavam por vir.

Quando os convidados se separaram, por volta de meia noite, o caminho de volta para Berlim já estava cheio de tanques russos. A Operação Rosa havia começado. "Um muro não é muito agradável, mas é muito melhor que uma guerra", falou John F. Kennedy.

*Patrick Major, autor deste artigo, é professor de História Moderna na Universidade de Reading. Seus livros incluem "A sombra do muro: Histórias verdadeiras do passado dividido de Berlim" e "Atrás do muro de Berlim: Alemanha Oriental e as fronteiras do poder".

Via BBC

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

História: Os espiões adolescentes recrutados pela polícia secreta alemã na Guerra Fria

HISTÓRIAS DA GUERRA FRIA

Torre de vigilância da Stasi: polícia secreta era temida na Alemanha Oriental (Foto: Getty Images)
O primeiro encontro oficial de Shenja, então uma estudante de 17 anos, com um agente da polícia secreta da Alemanha Oriental ocorreu em fevereiro de 1981.

Documentos do antigo Ministério para a Segurança do Estado (MfS), popularmente conhecido como Stasi, ilustram um evento planejado em detalhes e um lado pouco debatido da temida organização: o aliciamento de menores de idade como colaboradores informais.

Naquela reunião, a Stasi recrutou a adolescente. Vinda de uma família "disfuncional" na visão da ditadura do Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED), Shenja era um alvo interessante. Sua mãe, a senhora Beden, constava nos arquivos da Stasi desde 1961 como uma "fugitiva da República" por ter se mudado de Rostock para Hamburgo antes da construção do muro de Berlim.

Em 1981, as duas estavam separadas pelo regime havia cerca de oito anos. Esse desfecho começou quando Beden foi proibida de voltar a Hamburgo após uma viagem a Rostock. Ao longo de alguns anos, ela tentou deixar o país socialista novamente, inclusive pedindo um visto de saída. Seu comportamento, considerado um risco para ordem social, rendeu-lhe 10 meses na prisão, em 1973, e a perda da guarda da filha, enviada a um orfanato.

Beden foi deportada para a Alemanha Ocidental em 1975, sem Shenja e o filho nascido cerca de um ano antes. Do exterior, ela tentou resgatar as crianças, enquanto a Stasi reduziu ao máximo o seu contato com a garota. Até que, em 1980, o nome de Shenja apareceu em um panfleto sobre violações de direitos humanos em uma reunião da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) em Madri, o que levou a Stasi a contatar a estudante.

Shenja não era uma raridade na estrutura da Stasi. Pelo contrário, em seus 40 anos de existência, a polícia secreta aliciou informalmente milhares de adolescentes para se infiltrar em áreas hostis ao regime do SED, como grupos punks ou com religiosos oposicionistas. Esses jovens, por outro lado, só poderiam ser recrutados de forma oficial quando adultos. Logo, termos de compromisso assinados por menores não eram legais.

A maioria deles tinha por volta de 16 e 17 anos. Há poucos estudos específicos sobre a quantidade de menores aliciados, mas o historiador Helmut Müller-Enbergs compartilha a hipótese de que tratavam-se de 0,8% dos colaboradores não oficiais. Ou seja, cerca de 1,3 mil em 1989.

"Jovens de 17 anos eram frequentemente recrutados antes do serviço militar para obterem informações de soldados no quartel. Os de 15/16 anos costumavam estar em ambientes alternativos (góticos, punks, skinheads etc.), então a Stasi queria dados sobre essas redes", explica à BBC News Brasil Müller-Enbergs, professor-adjunto do Departamento de História da Universidade do Sul da Dinamarca (SDU) em Odense, na Dinamarca.

Cidadãos ainda mais jovens chegaram a ser recrutados. Em alguns casos, a Stasi queria testá-los para carreiras oficiais na entidade. Primeiro, explica Jens Gieseke, chefe do departamento de Comunismo e Sociedade no Centro Leibniz para História Contemporânea, em Potsdam, a organização buscava estabelecer "uma base de confiança" entre o oficial de cada caso e os candidatos para "convencê-los (ou pressioná-los)" a cooperar e influenciá-los politicamente. "Mas não havia lavagem cerebral. Eles não usavam técnicas psicológicas tão avançadas."

O caso de Shenja é uma das milhares de histórias preservadas pelo Arquivo de Registros da Stasi, agência que foi responsável durante 31 anos por manter os documentos da polícia secreta e abri-los ao público. Desde 21 de junho, o acervo passou a integrar os arquivos federais, mas os cidadãos continuam a ter acesso aos dados.

Arquivos da Stasi foram tornados públicos após a reunificação da Alemanha (Foto: Getty Images)

Prática restrita


Dissolvida em janeiro de 1990 durante a reunificação da Alemanha, a Stasi foi construída sob orientação direta da União Soviética para controlar a vida dos alemães orientais, oprimir opositores e dar suporte ao SED. Na época de seu seu fechamento, tinha 189 mil informantes não oficiais (1 para cada 90 habitantes da Alemanha Oriental) e 91 mil funcionários em tempo integral.

O alto escalão da polícia secreta, segundo os especialistas, não apenas sabia do aliciamento de menores, como o promovia até certo ponto. Por outro lado, não parecia existir uma estratégia ampla ou, como afirma Gieseke, menores denunciando pais e parentes.

"Ao contrário dessa imagem de penetração total de famílias como unidades sociais básicas, alimentadas por fantasias orwellianas, as famílias eram portos intactos de relações de confiança na Alemanha Oriental, ao menos no período pós-década de 1950", diz.

Apesar de não ser insignificante, o uso de menores pela Stasi nunca se tornou amplo. Entre os motivos estariam a falta de popularidade da prática entre os funcionários (muitos dos quais tinham filhos), a ilegalidade desse tipo de conduta, e o fato de que os informantes precisavam coletar informações políticas complexas, um tipo de compreensão sofisticada que adolescentes ainda não haviam desenvolvido por completo.

Não há, ao menos por hora, muitos detalhes sobre a percepção dos alemães orientais a respeito dessa prática. O cenário mais provável é que seriam limitadas as chances de a população saber sobre os aliciamentos. Segundo Gieseke, ainda que houvesse esse conhecimento, discussões sobre o tema ficariam restritas a ambientes privados.

Antiga sede da Stasi em Berlim é hoje um centro visitação e pesquisa chamado
 'campus para a democracia' (Foto: BSTU)

Espiões adolescentes


Ao infiltrar-se em uma demografia mais jovem, a polícia secreta queria uma porta a grupos aos quais teria dificuldade de acessar de outras formas. O foco, em geral, era obter dados sobre as atividades políticas de colegas de classe uma vez que colaboradores adolescentes teriam melhores condições de interagir com esses alvos do que professores ou adultos.

A Stasi utilizava diversas estratégias para abordar esses jovens, incluindo a manipulação de candidatos de "famílias instáveis" ou se estabeleciam como "amigos" mais velhos e "solidários". Antes dos recrutamentos, a organização também avaliava os possíveis pontos fracos de informantes e considerava se os alvos estavam prontos para trabalhar com a polícia secreta. Eles ainda focavam em fãs de espionagem e jovens envolvidos em crimes, que poderiam ser forçados a colaborar para evitar punições.

Depois de recrutados, esses jovens não eram pressionados ao extremo. Os informantes geralmente se reuniam com seus oficiais em uma base regular para relatar e receber instruções. "Mas a cooperação era 'bem frágil'. Em um grande número de casos, os agentes não conseguiram estabelecer um contato estável e os supostos informantes tentaram escapar da pressão ou compartilharam seu segredo com familiares ou amigos. Nesse caso, a Stasi geralmente precisava encerrar a cooperação e encerrar o processo", diz Gieseke.

Construção do muro de Berlim: a Stasi existiu por quatro décadas, quando a Alemanha era
 dividida em Oriental, de influência comunista, e Ocidental, capitalista (Foto: Getty Images)

Registros falhos


Hoje, é difícil identificar esses menores colaboradores com base nos arquivos da Stasi. Como a organização não definiu uma provisão especial para registrá-los, havia diferentes formas de fazê-lo internamente entre as burocracias locais. Alguns se referiram a esses indivíduos como "pessoas de contato", outros como "menores precursores".

Ambas as nomenclaturas borram as estáticas oficiais, pois esses registros não podem ser conclusivamente estabelecidos como de menores colaboradores. Para Gieseke, essa prática pode ter sido adotada para turvar os dados, mas "não há indícios de que o número 'real' de informantes menores seja significativamente maior".

Na Alemanha reunificada, o acesso a esses casos depende da permissão do ex-informante. Por outro lado, os arquivos podem ser acessados se os colaboradores tiverem cooperado com a polícia secreta depois dos 18 anos.

Em alguns casos, ex-informantes menores de idade vieram a público com suas histórias. Angela Marquardt, uma ativista política de esquerda e punk na Alemanha unificada, escreveu um livro sobre como a Stasi a abordou ainda adolescente.

No caso de Shenja, a sua colaboração com a polícia secreta durou até 1987. Como estudante em Dresden e Jena, passou informações sobre colegas de universidade para a Stasi. Mas sua colaboração foi encerrada após seu marido tornar-se um funcionário em tempo integral do MfS.

Os documentos mostram que Shenja ficou surpresa e triste com seu o destino. No último encontro com a Stasi, ganhou apenas 200 marcos como agradecimento.

Via BBC

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

História: Os 33 segundos que marcaram o início da Guerra Fria há 76 anos

HISTÓRIAS DA GUERRA FRIA


No Capitólio, com a Câmara de Representantes totalmente lotada, o 33º presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, com seus 62 anos, óculos redondos, terno escuro e gravata listrada, abriu sua pasta preta com folhas soltas que normalmente gostava de usar para ler seus discursos.

Tomou um gole de água, olhou ao redor da sala para sua audiência e agarrou-se à tribuna.

"A gravidade da situação enfrentada pelo mundo hoje requer meu comparecimento a uma sessão conjunta do Congresso. Estão envolvidas a política externa e a segurança nacional deste país", afirmou.

O dia era 12 de março de 1947. Apenas dois anos antes, a sensação era de que a segurança nacional americana estava garantida com a vitória sobre a Alemanha de Hitler. Mas, naquele dia, Truman descreveu uma ameaça ainda mais insidiosa.

A Doutrina Truman, como este discurso ficou conhecido, convocou os Estados Unidos a se comprometer com a contenção do comunismo e da União Soviética, sua aliada na Segunda Guerra Mundial.

As origens da Guerra Fria são complexas, muito debatidas e certamente não foi a Doutrina Truman que a causou. Mas há historiadores que consideram que este discurso foi o momento em que ela foi declarada.

Mas por que o medo substituiu tão rápido a esperança?

O que havia mudado?


Não haviam ocorrido grandes mudanças, segundo o renomado historiador Melvyn Leffler, professor emérito da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, e autor de diversos livros sobre a Guerra Fria e a política externa americana.

Na verdade, as relações entre o Ocidente e a União Soviética foram tensas desde a fundação da mesma.

"Os Estados Unidos, o Reino Unido e a França intervieram na Rússia em 1917, 1918 e 1919", diz Leffler.

"Ao longo da guerra, houve tensões sobre a abertura de uma segunda frente na Europa ocidental. Stalin queria essa abertura em 1942, mas ela só aconteceu em 1944."

Caricatura da época, mostrando Stalin em apuros com os efeitos da 'Doutrina Truman'
"Além disso, os americanos e os britânicos desenvolveram uma bomba atômica que foi mantida em segredo contra Stalin, que tinha seus espiões informando a ele, enquanto os Estados Unidos sabiam que estavam sendo espionados", explica Leffler.

"Mas era fundamental derrotar o Eixo — a Alemanha nazista, a Itália e o Japão —, o que prevaleceu sobre qualquer outra consideração."

Efeito dominó


Assim que a guerra terminou, a prioridade dos políticos americanos foi garantir que, nunca mais, nenhum adversário tivesse a perspectiva de obter o controle dos recursos da Europa e da Ásia.

"O grande temor em 1946 e 1947 não era que a União Soviética de Stalin se envolvesse em uma agressão militar aberta", explica Leffler.

"O grande temor era que pudesse explorar o fermento social e a agitação política existente na Europa do pós-guerra, não só no leste europeu e em parte da Europa central (onde a URSS mantinha tropas), mas em todo o sul e ocidente europeu, onde os partidos comunistas concorriam pelo poder, com muito sucesso na Itália e na França", conforme destacou o historiador no programa de rádio The Forum, do Serviço Mundial da BBC.

Soma-se a isso que os comunistas estavam travando uma guerra civil na China e sua perspectiva de vitória indicava que Stalin seria capaz de projetar sua influência por todo o leste asiático.

E a perspectiva ficava ainda mais assustadora ao se aplicar o que ficaria conhecido como "teoria do efeito dominó", que permeou por décadas a política externa dos Estados Unidos. Segundo ela, a "queda" de um Estado capitalista para o comunismo precipitaria a queda dos governos não comunistas nos Estados vizinhos.

Guerra de palavras


Além de inúmeras condutas que indispuseram as duas partes, houve uma profusão de pronunciamentos que foram traçando o caminho até a Doutrina Truman.

Stalin fez seu discurso na véspera das eleições legislativas da União Soviética de 1946
Em 9 de fevereiro de 1946, Stalin, em seu primeiro discurso importante do pós-guerra, evocou em Moscou o fantasma latente de outra grande guerra, que ele chamou de "sistema capitalista de economia mundial".

Ele declarou que outras "catástrofes militares" eram inevitáveis porque não era possível que os países atuassem por meio de "decisões coordenadas e pacíficas".

"O desenvolvimento irregular dos países capitalistas, com o passar do tempo, conduz a sérios conflitos nas suas relações, e o grupo de países que se consideram insuficientemente abastecidos de matérias-primas e mercados de exportação tenta mudar a situação e fazer com que tudo se volte a seu favor, com a força das armas", afirmou Stalin.

Por isso, a União Soviética precisaria dedicar seus recursos e energia nos próximos anos para desenvolver as indústrias básicas até o ponto de ficar blindada "contra todas as contingências".

Longo telegrama


"Muitas autoridades americanas, incluindo Truman, não prestaram atenção em Stalin. Mas outros viram este discurso como uma quase declaração da Terceira Guerra Mundial", afirma Denise Bostdorff, catedrática de estudos da comunicação da Faculdade de Wooster, em Ohio, nos Estados Unidos.

Stalin disse, por exemplo, "que queria financiar a ciência para superar as conquistas científicas estrangeiras. E o que essa audiência preocupada ouviu foi que ele queria uma bomba atômica", ela explica.

"E, quando disse que a União Soviética triplicaria sua produção de aço, essas autoridades americanas e alguns meios de comunicação interpretaram como se ele estivesse se preparando para um conflito com o Ocidente."

O Departamento de Estado americano, responsável pela política externa, pediu à sua Embaixada em Moscou uma análise do expansionismo soviético e suas intenções globais. A resposta do, até então, relativamente desconhecido diplomata George Kennan foi explosiva.

Kennan chegaria a ser um dos membros do grupo de especialistas em
política externa americana conhecido como 'The Wise Men'
"Kennan ditou um telegrama de 8 mil palavras, usando várias metáforas, como: o comunismo era como uma doença, que violava a integridade do corpo e o destruía de dentro para fora", explica Bostdorff.

"Também o preocupava a possível penetração dos comunistas nos sindicatos, nas organizações de direitos civis, nos grupos culturais e, neste caso, o inimigo está novamente no lado de dentro, e a penetração quase tem sentido de violação."

Ele advertiu que as políticas soviéticas presumiam a hostilidade ocidental e que o expansionismo soviético era inevitável. Na opinião de Kennan, Moscou somente seria dissuadido por uma oposição enérgica, fosse ela política ou militar. Ele recomendou uma política de "contenção paciente a longo prazo, mas firme e vigilante".

O "longo telegrama", como ficou conhecido, circulou amplamente e silenciou outras análises mais racionais.

'Os pilares da paz'


Algumas semanas depois, no início de março de 1946, o líder britânico durante a Segunda Guerra Mundial, Winston Churchill, interveio nessa guerra de palavras.

Em um discurso em Fulton, no Missouri (Estados Unidos), ele expôs "alguns fatos sobre a posição atual na Europa": "de Stettin [Polônia], no mar Báltico, até Trieste [Itália], no Adriático, caiu sobre o continente uma cortina de ferro".

"Atrás dela, encontram-se todas as capitais dos antigos Estados da Europa central e oriental", segundo Churchill.

"Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sófia — todas estas famosas cidades e suas populações, bem como os países no seu entorno, encontram-se no que devo chamar de esfera soviética e todos estão submetidos, de uma forma ou de outra, não apenas à influência soviética, mas a altíssimas e, em muitos casos, crescentes medidas de controle por parte de Moscou."

O discurso de Churchill, intitulado "Os pilares da paz", levou Stalin a acusá-lo de ser belicista.

Churchill e Truman a caminho de Fulton, onde Churchill fez seu famoso discurso 'Os pilares da paz'
"Stalin estava furioso", afirma Vladislav Zubok, professor de história internacional da Universidade London School of Economics (LSE), no Reino Unido.

"Churchill, que costumava ser tão gentil poucos meses antes, basicamente estava oferecendo uma aliança militar entre os EUA e o Reino Unido."

"Isso disparou um extremo receio [em Stalin]", explica o professor.

"Ele convocou o povo soviético a produzir mais aço, e os físicos soviéticos a fabricar bombas atômicas em segredo — não porque quisesse iniciar a Terceira Guerra Mundial, mas porque era profundamente inseguro e estava convencido de que somente a força seria a garantia da vitória."

O telegrama de Novikov


Assim como o Ocidente tentava ter uma visão mais clara das intenções soviéticas nos meses e anos que se seguiriam, os soviéticos também tentavam entender o que seus antigos aliados estavam fazendo.

O correspondente soviético do longo telegrama de Kennan foi o telegrama de Nikolai Novikov, embaixador soviético nos Estados Unidos, de setembro de 1946. Ele advertia que os Estados Unidos haviam saído da Segunda Guerra Mundial economicamente fortes e começado a dominar o mundo.

"A política exterior dos Estados Unidos, que reflete as tendências imperialistas do capital monopolista americano, caracteriza-se, no período do pós-guerra, por uma luta pela supremacia mundial", afirmou Novikov.

Ele prossegue: "Este é o verdadeiro significado das muitas declarações do presidente Truman e de outros representantes dos círculos governantes americanos: que os Estados Unidos têm o direito de liderar o mundo. Todas as forças da diplomacia americana — o Exército, a Aeronáutica, a Marinha, as indústrias e a ciência — estão a serviço desta política externa."

Da esquerda para a direita: Novikov, o diplomata Andrey Vyshinsky e o
chanceler Vyacheslav Molotov, na ONU, em 1946
O telegrama de Novikov reafirmou a determinação soviética de estender sua influência e garantir sua zona de segurança na Europa oriental. E destacou mais uma vez o medo, a suspeita e a falta de confiança entre os dois lados da Guerra Fria.

'Matar de susto'


Em 21 de fevereiro de 1947, o Departamento de Estado americano recebeu uma mensagem do Ministério de Relações Exteriores britânico, dando conta que o Reino Unido — financeiramente paralisado por sua dívida de guerra, com uma economia industrial cambaleante e depois de um inverno brutal — não poderia mais fornecer a ajuda militar e econômica que havia garantido à Grécia e à Turquia, o que deixaria um vácuo em uma região estrategicamente importante.

Em seu discurso histórico, 19 dias depois, Truman pediu ao Congresso americano US$ 400 milhões em ajuda para aqueles dois países e, a cada cidadão americano, seu compromisso de lutar contra o comunismo em todas as frentes. Mas o que se verificou entre um acontecimento e o outro não foi uma reorientação radical e repentina da política externa americana.

Embora as inúmeras palavras desferidas já estivessem preparando o caminho para o que se seguiria, o democrata Truman enfrentava um Congresso republicano recém-eleito (pronto para se voltar para uma política externa mais isolacionista) e um povo americano cansado da guerra e ansioso para que seus jovens voltassem para casa.

Além disso, os Estados Unidos não tinham tradição de fornecer ajuda econômica para outros países.

Após intensos debates, a ajuda financeira à Grécia e à Turquia solicitada
por Truman acabou sendo aprovada pelo Congresso americano
O presidente se reuniu em particular com os líderes do Congresso para obter seu apoio.

O senador Arthur Vandenberg, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado e ex-isolacionista, respondeu que os republicanos o apoiariam se ele defendesse publicamente a ajuda à Grécia, que enfrentava uma guerra civil contra rebeldes comunistas, e à Turquia, que era pressionada pela União Soviética para compartilhar o controle do estreito de Dardanelos.

Mas Vandenberg acrescentou que, se quisesse o apoio popular, Truman precisaria "matar de susto o povo americano".

Credo


Truman seguiu o conselho do senador com um discurso incluindo palavras que, em 33 segundos dos 19 minutos do discurso, formavam o núcleo do seu argumento:

"Creio que a política americana deve ser apoiar os povos livres que resistem às tentativas de subjugação por minorias armadas ou pressões externas. Creio que devemos ajudar os povos livres a construir seus próprios destinos, à sua maneira. Creio que a nossa ajuda deve ser principalmente econômica e financeira, o que é essencial para a estabilidade econômica e política."

Truman assinando a lei de assistência de ajuda exterior, que forneceu
um programa de ajuda à Grécia e à Turquia
Truman não era um orador eloquente, mas, naquela ocasião, isso jogou a seu favor: ele deu a impressão de estar falando as coisas como elas são, sem adornos, e isso o tornou mais convincente.

Ele foi aplaudido, mas o apoio não era esmagador. Na verdade, as semanas que se seguiram foram marcadas por debates acalorados. Mas as duas câmaras aprovaram a proposta em 22 de maio de 1947, e Truman promulgou o projeto de lei que, segundo ele, era um "aviso de que não se permitiria que a marcha dos comunistas fosse bem sucedida por omissão (dos Estados Unidos)".

Por outro lado, o Compêndio da História da URSS, do historiador soviético Andrey Shestakov, afirma: "em 1947, o presidente Truman proclamou o direito dos Estados Unidos de se intrometer nos assuntos internos de outros países".

A Doutrina Truman impulsionou o Plano Marshall, a criação da Otan e deu forma à política externa dos Estados Unidos por mais de 40 anos, incluindo o período da Guerra Fria e depois dela. E a retórica e as metáforas usadas pelos participantes da saga que dividiu o mundo ainda persistem.

"Às vezes, usamos a linguagem e, às vezes, a linguagem é que nos usa", conclui Bostdorff.

Via BBC - Fotos: Getty Images

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

História: A crise dos mísseis de Cuba: as fotos de aviões espiões que ajudaram a revelar armamento

As imagens captadas em voos de baixa altitude pelo capitão William Eckner foram as primeiras a confirmar, sem margem para dúvidas, a presença de mísseis soviéticos em Cuba com alto nível de preparação para seu lançamento (imagem: National Security Archive)
A primeira pergunta do presidente americano John F. Kennedy para o funcionário da CIA Sidney Graybeal naquela manhã deixava clara sua principal preocupação: "Isso está pronto para ser disparado?"

"Isso" eram os mísseis que a União Soviética (URSS) havia secretamente transportado para Cuba. Seu alcance de 1.770 km permitiria atingir com bombas nucleares todo o sudeste de Estados Unidos - e até alcançar a capital do país.

O clima em Washington, com seus agradáveis 23 °C, estava longe de refletir o aumento brutal da temperatura política que acabava de ocorrer naquele 16 de setembro de 1962. E esse clima perduraria por várias semanas, quando o mundo viveu seu momento mais próximo da 3ª Guerra Mundial.

Graybeal era o chefe da Divisão Espacial e de Mísseis da CIA. Naquele dia, ele havia chegado à Casa Branca às 7h, junto com Art Lundahl, então diretor do Centro de Interpretação Fotográfica (NPIC, na sigla em inglês), que era o precursor da atual Agência Nacional de Inteligência Geoespacial.

Eles levaram grandes quadros, preparados para sua exposição sobre a existência dos mísseis soviéticos em Cuba, perante o Comitê Executivo do Conselho de Segurança Nacional (EXCOMM, na sigla em inglês), que era o grupo de funcionários que viria a assessorar Kennedy ao longo da crise.

O presidente americano John F. Kennedy e seu ministro da Defesa, Robert McNamara, em sessão do Conselho Executivo do Conselho de Segurança Nacional

O presidente americano John F. Kennedy e seu ministro da Defesa, Robert McNamara, em sessão do Conselho Executivo do Conselho de Segurança Nacional (Crédito: Biblioteca Presidencial John F. Kennedy)
Mas, antes disso, eles passaram a manhã informando altos funcionários sobre a gravidade da situação.

Eles falaram com o conselheiro de Segurança Nacional, McGeorge Bundy; com o secretário do Tesouro, Clarence Douglas Dillon; e, depois, com o então procurador-geral da república, Bobby Kennedy, irmão do presidente, que subiu imediatamente até o quarto pessoal de John Kennedy para informá-lo.

Por volta das 11h, os funcionários passaram para o salão do gabinete. E, perto de meio-dia, o presidente Kennedy reuniu-se a eles.

Após a breve introdução do então diretor em exercício da CIA, o general Marshall "Pat" Carter, Lundahl abriu os enormes quadros sobre a mesa, bem em frente ao presidente. Ao lado de Kennedy, estavam o então secretário da Defesa, Robert McNamara, e de Estado, Dean Rusk.

Lundahl começou a detalhar as imagens aéreas que mostravam os acampamentos sendo montados na ilha para instalação das armas soviéticas.

Comboio soviético perto de San Cristóbal, em imagem do major Steve Heyser a bordo de um avião U-2 - a primeira a mostrar a existência de mísseis soviéticos em Cuba (Crédito: USAF)
Segundo grupo de mísseis soviéticos identificados em Cuba (Crédito: USAF)
Mas os mísseis, as plataformas de lançamento, outros objetos e estruturas que haviam sido fotografados estavam cobertos por grandes lonas, o que levou Kennedy a perguntar como eles sabiam que ali havia mísseis balísticos de médio alcance. Foi quando chegou a vez de Graybeal intervir como especialista em mísseis

Anos depois, ele explicaria que as conclusões a que eles haviam chegado sobre o tipo de mísseis a serem lançados, bem como as condições e o tempo necessário para o seu disparo, eram o resultado da análise de um conjunto de elementos que combinava informações de inteligência obtidas por fontes humanas e a análise das fotografias aéreas.

A chave fotográfica


As imagens feitas pelos aviões de reconhecimento tiveram papel fundamental.

"As fotografias aéreas foram a chave de toda a crise dos mísseis cubanos", afirmou Dorothy Cochrane, curadora do Museu Nacional do Ar e Espaço do Instituto Smithsoniano, à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC).

Para essas tarefas, foram utilizados dois tipos de aeronaves. Um deles foi o avião de reconhecimento U-2 da empresa Lockheed Martin, que tirava fotografias em grande altitude. E havia os aviões Vought RF-8 Crusader e RF-101, que podiam realizar voos de baixa altitude, por cima das copas das árvores, a cerca de 30 metros do solo.

Cochrane indica que os aviões de reconhecimento U-2 possibilitaram detectar o que estava acontecendo em Cuba, permitindo a Kennedy confrontar o primeiro-ministro soviético, Nikita Khrushchev, que inicialmente negou as ações da URSS na ilha.

"Kennedy então pediu que se fizessem fotografias de baixa altitude, que realmente confirmaram a presença desses mísseis", diz Cochrane. "Por isso, foram as imagens de baixa altitude feitas pelo capitão William Eckner, da Marinha americana, no seu avião RF-8A, que confirmaram a presença da base de mísseis soviética e seu nível de preparação para o lançamento."

Ela explica que essas imagens foram mostradas para Kennedy como prova de um possível ataque iminente e também serviram para que o presidente refutasse a negativa de Khrushchev sobre o envio dos mísseis soviéticos para Cuba.

Posteriormente, houve um momento em que as imagens dos aviões de reconhecimento foram mostradas para o mundo na Organização das Nações Unidas (ONU), de forma que a URSS já não poderia continuar negando o que estava acontecendo.

'Teoria do louco': como Nixon tentou convencer soviéticos que usaria bomba nuclear

Das suspeitas até a crise


No verão de 1962, a inteligência americana começou a receber informações sobre a entrada sem precedentes de armas soviéticas em Cuba.

Uma missão do avião de reconhecimento U-2 em 29 de agosto descobriu a presença de mísseis terra-ar SA-2, o que gerou preocupação junto ao chefe da CIA, John McCone. Ele enviou uma nota a Kennedy, expressando sua apreensão de que a URSS pudesse tentar instalar mísseis ofensivos em Cuba.

O avião U-2 foi projetado para espionar o território soviético e acompanhar seu desenvolvimento militar. Ele acabou servindo também para espionar os acontecimentos em Cuba (Foto: Getty Images)
Mas o presidente, da mesma forma que a maior parte da comunidade americana de inteligência, estava inclinado a acreditar que esses mísseis estivessem desmontados com fins defensivos, para evitar outra ação como a invasão da Baía dos Porcos.

Enquanto isso, a CIA vinha recebendo diversos relatórios de inteligência humana provenientes de Cuba através de Miami, na Flórida, nos Estados Unidos, sobre o transporte de mísseis por diferentes partes da ilha.

"Analisei detalhadamente esses relatórios e a maior parte deles poderia referir-se a mísseis terra-ar, pois, segundo as descrições, eles não eram suficientemente grandes para serem mísseis ofensivos. Noventa por cento desses relatórios podiam ser explicados dessa forma, como não sendo mísseis ofensivos", afirmou Sidney Graybeal em uma entrevista concedida em 1999, mantida no Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington, nos Estados Unidos.

Mas o ex-funcionário explicou que, dentre todos esses relatórios, cinco eram realmente preocupantes, pois descreviam um objeto coberto com uma lona, que era sempre transportado em altas horas da noite. Ele era levado em um trailer que não conseguia dobrar as esquinas e, por isso, precisava retroceder e avançar, devido às suas dimensões similares às de um poste telefônico.

"Um míssil terra-ar não teria enfrentado problemas [para dobrar as esquinas], de forma que esse relatório e outros similares foram a base que usamos, quando os U-2 começaram a voar, para tentar orientar onde eles deveriam procurar", explicou Graybeal.

Foi assim que uma missão conduzida no dia 14 de outubro de 1962 encontrou as primeiras imagens que foram analisadas no dia seguinte pelos especialistas do NPIC e apresentadas a Kennedy na reunião de 16 de outubro.

Naquela primeira sessão do EXCOMM, as imagens mostravam, entre outras coisas, comboios soviéticos transportando mísseis perto de San Cristóbal e a existência de um provável complexo de lançamento de mísseis balísticos de médio alcance em Guanajay, ambas na região centro-oeste de Cuba.

Mapa apresentado na primeira sessão do EXCOMM, mostrando o alcance dos mísseis nucleares soviéticos sendo instalados em Cuba (imagem: National Security Archive)
Segundo o relatório inicial apresentado pelo general Carter, foram identificados no local de lançamento 14 trailers de mísseis cobertos com lonas, com cerca de 20 metros de comprimento. Este viria a ser um dado fundamental para determinar o tipo de míssil, embora não fosse o único.

Graybeal explicou para Kennedy naquela reunião que havia dois tipos de mísseis balísticos soviéticos envolvidos - o SS-3, que media cerca de 20 metros e podia ter alcance de 1.014 km a 1.126 km, e o SS-4, que media cerca de 22 metros e tinha alcance de até 1.770 km.

Os mísseis SS-4 detectados em Cuba estavam sem o cone na ponta, o que justificava a diferença entre os 20 metros de comprimento dos trailers e os 22 metros dos mísseis já montados.

Na entrevista concedida em 1999, Graybeal explicou que, para identificar esses mísseis, foram empregadas as fotografias tiradas pelos aviões U-2 sobre Cuba, além de imagens captadas quanto esses mísseis eram exibidos nos desfiles militares em Moscou e outras em lugares onde eles sabiam que esses mísseis haviam sido testados.

"Nós tínhamos excelentes informações de telemetria, que nos forneciam as características internas do míssil", afirmou ele, salientando que, desta forma, eles conheciam o alcance e a capacidade de carga, entre outros detalhes.

Outra informação crítica muito importante, embora não fosse proveniente das fotografias aéreas, vinha dos manuais de funcionamento daqueles mísseis, que os Estados Unidos haviam conseguido por meio de Oleg Penkovsky, alto oficial da inteligência soviética que colaborou com a CIA e com o Serviço Secreto de Inteligência britânico (o MI6).

Com esses dados, era possível saber o que faltava e quanto tempo seria necessário para instalar um míssil daquele tipo e deixá-lo pronto para ser disparado.

A crise, foto a foto


Após aquela primeira reunião do EXCOMM, os aviões de reconhecimento norte-americanos continuaram realizando missões para acompanhar a situação no local.

Foi assim, por exemplo, que um voo permitiu identificar, em 16 de outubro de 1962, o local onde provavelmente estavam armazenadas as ogivas nucleares, próximo a um dos locais de lançamento. E, no dia seguinte, outra missão detectou a presença na ilha de caças soviéticos MIG-21.

Primeira fotografia da construção de um campo de lançamento de mísseis balísticos de alcance intermediário em Cuba (Crédito: USAF)
Fotografia de um avião MIG-21, conhecido como 'rede de pesca' nos Estados Unidos, confirmando a existência deste tipo de avião em Cuba (Crédito: Agência Nacional De Inteligência Geoespacial)
As imagens forneceram indicações sobre a presença de tropas perto dos locais onde estavam localizados os mísseis. Isso ajudou a avaliar a quantidade de militares soviéticos enviados para a ilha e a rapidez com que eles poderiam deixar os mísseis prontos para disparo.

As fotografias aéreas permitiram localizar os mísseis, bem como a disposição das tropas
próximas a eles (Crédito: Agência Nacional De Inteligência Geoespacial)
Os aviões de reconhecimento também localizaram as defesas instaladas pelos soviéticos para proteger seus mísseis balísticos. A presença de mísseis terra-ar dificultava as operações de vigilância americanas e reduzia a probabilidade de uma ação militar sobre a ilha.

Os aviões de reconhecimento também ajudaram a determinar a localização dos mísseis ]defensivos SAM terra-ar (Crédito: Agência Nacional De Inteligência Geoespacial)
Eles também permitiram descobrir como a URSS estava reforçando sua presença militar em Cuba com o envio, em partes, de aviões bombardeiros Ilyushin-28, para que fossem montados na ilha.

A URSS enviou para Cuba partes para montagem dos aviões bombardeiros Ilyushin-28
na ilha (Crédito: Agência Nacional De Inteligência Geoespacial)
As fotografias aéreas possibilitaram aos Estados Unidos acompanhar os avanços soviéticos para a instalação dos mísseis de médio alcance, como se pode observar na imagem de 25 de outubro de 1962. Nela, estão presentes todos os elementos necessários para o lançamento de um desses mísseis, segundo os analistas do NPIC.

Os rastros no terreno que levam até uma das tendas onde os mísseis estavam abrigados indicam que ali havia uma arma quase pronta para ser usada.

Imagem de 28 de outubro de 1962, demonstrando que os soviéticos já mantinham mísseis em estado de preparação bastante avançado em Cuba (Crédito: Agência Nacional De Inteligência Geoespacial)
Após a resolução da crise pela via diplomática, quando os soviéticos aceitaram retirar os mísseis de Cuba, as fotografias dos aviões de reconhecimento permitiram acompanhar a desmontagem dos acampamentos e a retirada do material bélico até seu embarque de volta para a União Soviética.

Após o acordo diplomático que pôs fim à crise, os aviões de reconhecimento ajudaram a confirmar que a União Soviética estava cumprindo com sua parte de acordo, retirando os mísseis de Cuba (Crédito: Agência Nacional De Inteligência Geoespacial)
E, seis décadas depois da crise dos mísseis, os aviões de reconhecimento U-2 continuam em operação. Eles sobreviveram ao desenvolvimento dos satélites de vigilância e dos drones não tripulados, que se acreditava que fossem torná-los obsoletos.

Via BBC